Tigre da Tasmânia

«Eu escrevo como se fosse salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida» C. Lispector

segunda-feira, setembro 26

Teus Olhos

Tenho diante dos meus
Só os teus olhos, mais nada...

Há chama verde de estrelas,
Há lezírias outonais,
Pinceladas de aguarelas
Nos teus olhos verdes garços.
E há grãos de trigo estivais
Que hão de ser o pão doirado
Na minha fome de amar.

Há procelas e bonança
E résteas nuas de abrolhos
Nos teus olhos cor de esperança
Com longes de verde mar.
Prados e vales profundos
Espelham-se nos teus olhos
Com seus rios a cantar.

Nos teus olhos há dois mundos;
Nos meus... apenas os teus!
Os teus olhos são dois sóis
Que me trazem incendiada.
Teus olhos são labaredas
De noite acendem faróis
Na minha rota apagada.

Tenho diante dos meus
Só os teus olhos, mais nada!...

Teus Olhos, com letra de Maria Pimentel Montenegro,
in Senhora da Lapa, de Maria Ana Bobone

Direitos e Deveres dos cidadãos

«Temos uma cultura muito baseada em direitos e pouco em deveres. Todo o discurso ainda é o do coitadinho, do dêem-me isto, dêem-me aquilo. É preciso dar a ideia às pessoas que elas também têm de fazer pela sua vida», afirmou Maria José Nogueira Pinto, candidata do CDS-PP à Câmara Municipal de Lisboa nas próximas eleições autárquicas, numa acção de campanha.

Independentemente de convicções políticas de esquerda ou de direita, a verdade é Nogueira Pinto disse aquilo que todos pensamos na teoria, embora na prática, quando toca os privilégios individuais de cada umbigo, muitos recuem. É verdade que os cidadãos têm direitos («a paz, o pão, habitação, saúde, educação», já dizia o Sérgio Godinho), mas para o bem de todos temos também todos de contribuir.

Jornalistas e o Português mal falado

Bastaram apenas cinco minutos de televisão esta noite para comprovar o que todos sabemos: fala-se muito mau Português e os jornalistas televisivos não escapam à infeliz regra.

«Muitos jogadores do Benfica vão estrear-se pela primeira vez em Old Trafford (estádio do Manchester United)» - Paulo Catarro, Telejornal, RTP1. As estreias são as coisas que se fazem pela primeira vez, que é sempre única...

«Carmona Rodrigues, que se tenta libertar-se da caravana do partido que o apoia» - Pedro Coelho, Edição da Noite, SIC - Notícias. Dois pronomes reflexos do mesmo objecto? O Carmona Rodrigues é vaidoso, mas não tanto...

Enfim, este é apenas mais um dos milhares de exemplos que todos nós já ouvimos e lemos. Mas quando terminará este assassinato do idioma? Editores, jornalistas, presidentes e proprietários dos órgãos de comunicação social, andam todos distraídos ou, mais grave ainda, não sabem de facto falar correctamente?

domingo, setembro 18

A imigração

Sendo Portugal hoje um destino de massas da imigração, nomeamente de populações do leste europeu, porque é que não se procuram maximizar os efeitos desta tendência?

O senso comum indica que muitos dos ucranianos, russos, bielorussos e outros povos eslavo que rumam ao nosso país são profissionalmente de uma elevada qualificação. Médicos, engenheiros, professores universitários, cientistas. E por cá que tarefas lhes reservamos? Trabalhos nas obras, nas limpezas, na restauração pouco qualificada. Ou seja, para além de uma enorme discriminação, estamos a deitar fora o potencial que nos caiu no colo, de mão beijada.

Esperemos que quem de direito comece a olhar para este fenómeno da imigração de leste não como um problema mas como uma oportunidade.

Informações de trânsito

Em altura de eleições autárquicas em Lisboa, para quando a proposta de lançar painéis a indicar o estado do trânsito nas principais ruas, avenidas e vias rápidas das maiores cidades, de forma a facilitar a vida aos automobilistas?

O lobbying

Sendo o processo de lobby transparente como pode contribuir para o fortalecimento e não para o enfraquecimento da democracia?

A resposta parece ser óbvia: um maior nível de transparência, seja do que for, será sempre positivo. E ainda mais no campo normalmente minado da comunicação, em que os obstáculos criadores de ruído na transmissão da mensagem são inúmeros.

Uma democracia baseia-se na justiça, que apesar de cega é transparente e neutral. Portanto um processo de gestão de sensibilidades que não esteja encoberto e escondido sob a capa dos bastidores estará a contribuir para uma melhoria da democracia, pois dela se aproxima inexoravelmente. Um combate de lobbying às claras será mais justo, pois as várias facções estarão a par da retórica dos adversários, o que sem dúvida enriquecerá o diálogo argumentativo.

A partir do momento em que, na teoria, todos podem lutar de igual para igual, a democracia só tem a lucrar. Acontece que depois, e mais uma vez, quem tem mais dinheiro consegue fazer melhor lobbying, e daí o fiel da balança da democracia fica de novo desequilibrado.

Casa no Campo

Casa no campo

Eu quero uma casa no campo
Onde eu possa compor muitos rocks rurais
E tenha somente a certeza
Dos amigos do peito e nada mais

Eu quero uma casa no campo
Onde eu possa ficar do tamanho da paz
E tenha somente a certeza
Dos limites do corpo e nada mais

Eu quero carneiros e cabras pastando
Solenes em meu jardim
Eu quero o silêncio das línguas cansadas
Eu quero a esperança de óculos
E um filho de cuca legal
Eu quero plantar e colher com a mão
A pimenta e o sal

Eu quero uma casa no campo
Do tamanho ideal, pau a pique e sapê
Onde eu possa plantar meus amigos
Meus discos e livros e nada mais


Elis Regina

domingo, setembro 11

O Museu Britânico ainda vem abaixo

David Lodge é brilhante. É ele um dos autores britânicos com maior sucesso, e merecidamente. O humor britânico de facto existe, refinado, subtil e hilariante, e Lodge é um dos expoentes máximos, ao captar e descrever com uma capacidade de imaginação e observação fora de série.

«O Museu Britânico ainda vem abaixo», o seu terceiro romance, de 1965, é um bom exemplo da finura da escrita de David Lodge. Ao retratar um dia na vida de Adam Apleby, o autor, comicamente, aborda um tema na altura tabu (e ainda hoje mal resolvido) da Igreja Católica: a contracepção, como algo que não seguiria as leis e a vontade de Deus. De uma forma descontraída e divertida, mas muito perspicaz e atenta, Lodge, através da Apleby, reflecte sobre o assunto e aponta muitas interpretações.

Sem dúvida a ler.

«A literatura é quase toda sobre sexo e nada sobre ter filhos. A vida é precisamente o contrário»

David Lodge

Oração da Paz

Senhor! Fazei de mim um instrumento da vossa paz.

Onde houver ódio, que eu leve o amor.
Onde houver ofensa, que eu leve o perdão.
Onde houver discórdia, que eu leve a união.
Onde houver dúvidas, que eu leve a fé.

Onde houver erro, que eu leve a verdade.
Onde houver desespero, que eu leve a esperança.
Onde houver tristeza, que eu leve a alegria.
Onde houver trevas, que eu leve a luz.

Ó Mestre, fazei que eu procure menos ser
consolado que consolar;
ser compreendido do que compreender;
ser amado do que amar.

Pois é dando que se recebe.
É perdoando que se é perdoado.
E é morrendo que se vive para a vida eterna.

São Francisco de Assis

A educação

«Considerai o Homem como uma mina rica em jóias de inestimável valor. A educação, tão somente, pode fazê-la revelar os seus tesouros e habilitar a humanidade a tirar dela algum benefício»

Bahá'u'lláh

Nem grego nem troiano

Sou nem grego nem troiano
nem covarde nem tirano
nem celta nem lusitano
nem português nem hispano
nem mourisco nem romano
nem hebreu nem ariano
nem índio nem africano
nem europeu nem mongol

sou um ser uma vontade
à procura da verdade
da justiça da igualdade
do amor da liberdade
da paz da felicidade
para toda a humanidade
una na diversidade
como a Vida a Terra o Sol

André Moa

quinta-feira, setembro 8

Os ecopontos seriam uma excelente prenda de Natal

Numa época em que a Ecologia é quase uma moda (e felizmente que é assim), porque não ser inovador e inventivo nas ofertas de Natal e aniversário? Ecopontos para toda a gente! Porque a Terra é a casa de todos, e como diz um amigo, «Se cada um varrer a frente da sua porta a rua estará limpa».

***

No outro dia, já bem tarde, seriam umas seis da manhã, pus-me a arrumar a casa do jantar que tinha dado nessa noite. Ao levar as garrafas para o ecoponto em frente de casa, de chinelos, tropecei em vários vidros deixados ao acaso no chão, em frente vidrão, fazendo um corte profundo nos pés. E passado uma semana esses vidros lá continuam. E continuam porque num vidrão não é suposto deixar este tipo de vidros e os funcionários não os recolhem. Saibamos usar a bênção eu são os ecopontos, sob pena de falharmos mais uma etapa no caminho do desenvolvimento.

Painéis luminosos perigosos

Para quem circula em Lisboa os painéis luminosos com notícias não são novidade. À entrada da cidade, junto às Amoreiras, no final do viaduto Duarte Pacheco, no Campo Pequeno, no cruzamento entre a Avenida da República e a Avenida de Berna, e um pouco por toda a capital, nos locais mais movimentados.
É verdade que é muito útil e agradável estar a par dos principais título informativos. No entanto, para quem vai a conduzir, para além de uma fonte de distração, é também causa de encadeamento. Será possível rever a situação?

Aplauso à Ministra da Educação

Um aplauso para a decisão da Ministra da Educação, Maria de Lurdes Rodrigues, de terminar com os concursos anuais de professores de forma a permitir que os docentes permaneçam três a quatro anos na mesma escola e com os mesmos alunos. Isto permite a criação de maiores laços na relação aluno-professor e mais dedicação de ambas as partes. Uma ideia tão simples demorou anos a ser decidida, sem se perceber muito bem porquê. No entanto, a FENPROF parece que já veio dizer que está contra, também sem se perceber porquê.
De todas as formas, parabéns a Maria de Lurdes Rodrigues.

Implosões em Tróia

Antes do «Patinho Feio» em Viana do Castelo vêm hoje abaixo duas das faraónicas torres do complexo Torralta em Tróia. Será um espectáculo mediático e está a ser tratado como tal, com convidados VIPs e ar de grande festa. É sem dúvida um grande avanço para a civilização, com o enterro de mais atentados ao Ambiente. A Quercus está preocupada com o projecto da Sonae Turismo para o local, que prevê a mudança do cais dos ferries Setúbal-Tróia para uma zona de alimentação de golfinhos. É de facto grave. A Sonae Turismo compromete-se, por outro lado, a emitir licenças de construção a moradias de apenas um piso. Positivo. Estima-se que o novo complexo turístico, para além de promover a renovação e o reordenamento da zona, venha a gerar cerca de 8 mil postos de trabalho. E nestas coistas do Ambiente, aliás como em tudo, a parte financeira é de igual importância.
Enfim, apesar de alguns contras, parece que finalmente estamos a assistir a uma política de limpeza dos mamarrachos. Esperemos agora pelas Torres de Ofir, Quarteira e todos as outras ameaças urbanísticas.

terça-feira, setembro 6

Fim de cancro urbanístico em Viana à vista

Desde sempre, apesar de ser "alfacinha" convicto, detenho uma ligação muito forte com Viana, a Viana da Foz do Lima, a Princesa do Lima, a Viana do Castelo, com as gentes, com a paisagem, com o ambiente, com a atmosfera vianense.
Foi lá que passei grandes temporadas, que conheci algumas das referências da minha vida, alguns dos meus melhores amigos, foi lá que descobri muito sobre mim e sobre o mundo. É lá que (também) me sinto bem, junto de Santa Luzia ou da Praia do Cabedelo (uma das mais bonitas do país), à beira do Lima ou no bulício da Praça da República.
De lá, da Pastelaria Caravela, vêm os melhores croissants do país; as melhores Bolas de Berlim e os melhores "lanches" (ou merendeiras, como lhes chamamos cá em baixo) vêm do Sr. Baltazar, no Cais Novo, margem sul de Viana.
As melhores caminhadas são feitas pela manhãzinha, no tabuleiro ferroviário da Ponte Velha, ou então à noite, sob as estrelas na Praia do Cabedelo. Viana, como dizem os vianenses, "Viana é Amor!". A cidade é um ser vivo, que se ama como a uma pessoa. E como uma pessoa tem milhares de questões, de assuntos e problemas.

E um desses problemas é o Prédio Coutinho, um edifício de 13 andares implantado no Centro Histórico de Viana do Castelo, que destoa da média de 2/3 andares que nivela o resto da Cidade Velha.
Para além de não ser belo à vista de grande parte dos vianenses impede, segundo a opinião do Presidente da Câmara Municipal Defensor Moura, a candidatura da capital do Alto Minho à classificação por parte da UNESCO de Património da Humanidade, à semelhança de outras cidades portuguesas. Esta opinião é corroborada pelo Governo e pela Sociedade POLIS da cidade, que querem demolir a construção. Do outro lado da barricada está a Comissão de Moradores do Prédio Coutinho mais os 300 moradores do edifício, que se recusam a admitir a demolição do imóvel.
Parece que finalmente vai abrir o concurso público para a implosão do «Patinho Feio», os planos de reordenamento da área estão em marcha, as casas de realojamento estão prontas e se tudo correr bem no primeiro semestre do próximo ano Viana ver-se-á livre deste cancro.
Que sirva de exemplo aos milhares de arquitectos e construtores civis «patos-bravos» que abundam por Portugal. Como o Prédio Coutinho existem muitos mamarrachos espalhados pelo país à espera da determinação das gentes de Viana. Viana é Amor.

Esta gente

«Esta gente cujo rosto
Às vezes luminoso
E outras vezes tosco
Ora me lembram escravos
Ora me lembram reis

Faz renascer meu gosto
De luta e de combate
Contra o abutre e a cobra
O porco e o milhafre

Pois a gente que tem
O rosto desenhado
Por paciência e fome
É a gente em quem
Um país ocupado
Escreve seu nome

E em frente deste gente
Ignorada e pisada
Como a pedra do chão
E mais do que a pedra
Humilhada e calcada

Meu canto se renova
E recomeço a busca
Dum país liberto
Duma vida limpa
E dum tempo justo»

Sophia de Mello Breyner Andresen

As minhas entrevistas - III

Durante a Conferência Anual, a que os Bahá’ís chamam Escola de Verão, tive oportunidade de entrevistar o Dr. Feizi Masrour Milani. Brasileiro, Feizi é médico e terapeuta de adolescentes, para além de fundador e director da INPAZ (Instituto Nacional para a Educação para a Paz e Direitos Humanos). Para além de trabalhos publicados, nomeadamente o livro «Tá Combinado!», uma reflexão sobre a pedagogia no interior das salas de aulas, Milani foi distinguido em 1999 com o Prémio Cidadania Mundial no Brasil. Muito directo e concreto nas suas sessões ao longo da semana, nesta entrevista vamos poder conhecer resumidamente algumas das ideias principais apresentadas nesta conferência.

Qual é a natureza do curso que veio apresentar nesta Conferência Bahá’í?

Esse é um programa que foi desenvolvido por nós no Brasil sobre a liderança e tem sido oferecido em escolas, em universidades, em empresas particulares, em organizações não-governamentais, porque em toda a parte se sente a necessidade de desenvolver uma nova compreensão, um novo paradigma de liderança que permita a construção de mudanças e de transformações em todos os níveis da sociedade.

Queria pegar nessa palavra, «paradigma», que tem sido muito repetida ao longo das suas sessões. Qual é a dimensão que lhe é dada neste curso que veio apresentar?

Os paradigmas são maneiras de enxergar o mundo. Cada paradigma é um conjunto de crenças, de valores, de expectativas, de generalizações e explicações que damos à nossa vida, ao nosso ser, para explicar como as coisas funcionam. Os paradigmas na verdade ajudam a estruturar a mente do ser humano para ele ser capaz de lidar com toda a complexidade de factos e de eventos ao seu redor. Só que no final das contas, quando não temos consciência dos nossos próprios paradigmas, eles acabam por nos aprisionar a determinadas formas de ver as coisas, a determinadas formas de intepretar os factos e isso então inibe as capacidades humanas e faz-nos repetir determinados padrões de comportamento.
E se queremos realmente promover a transformação dentro de qualquer organização, dentro de qualquer sociedade, é preciso questionar e rever os paradigmas que temos a respeito de nós mesmos, da natureza humana, da natureza da sociedade, enfim, de todos os aspectos da vida.

Falando também de paradigmas, neste caso mais de modelos, sabemos que na sociedade brasileira e na nossa, portuguesa, existe um modelo comportamental paternalista, em que tudo está mais ou menos preparado, em que não existe grande hipótese de sair do caminho traçado. Quais os obstáculos que podem advir deste modelo?

Eu percebo que tanto nas famílias como nas instituições educacionais, bem como na sociedade em geral, esse paradigma paternalista acaba inibindo as potencialidades, principalmente das crianças e dos jovens, na medida em que eles não recebem nenhum desafio, eles não têm oportunidade de experimentar, de testar as suas habilidades, de tentar e errar, já que o aprendizado só ocorre através do erro, o erro faz parte do processo de aprendizagem. Os nossos jovens, em muitos países, sentem esse vazio, de não terem desafios, de não terem algo para conquistar, algo para contribuir para a sociedade. Então, creio que precisamos de compreender que as crianças e os jovens têm capacidades, têm potencialidades, precisam de ter espaços de participação e receber desafios e cada vez mais terem responsabilidades crescentes, não como imposição, mas como uma oportunidade de darem a sua contriubuição, seja na família, seja na comunidade, seja na escola, seja na sociedade como um todo.

No contexto das escolas e das universidades que pode ser feito para promover uma maior participação dos jovens nas actividades e para fugir um pouco a este modelo paternalista que estávamos a falar?

Exacto. Nas escolas e nas universidades eu acho que uma das estratégias mais efectivas de promover a participação, o compromisso, a responsabilidade dos jovens, é a construcção de pactos de convivência. Ou seja, ao invés das instituições educacionais tentarem impor uma série de regras sobre os estudantes, sendo que muitas vezes os estudantes não compreendem o porquê dessas regras e qual o benefício delas, e por isso acabam não cooperando e não desenvolvendo o seu próprio sentido de disciplina interior, então quando os educadores envolvem os estudantes num processo colectivo de discussão, de reflexão e de pactuação de normas de convivência, de direitos e deveres, todo esse processo se modifica, porque os estudantes passam a ser co-autores e co-responsáveis por um ambiente na sala de aula que seja de cooperação, de segurança, de participação, de respeito às diferenças, de criatividade. Portanto, esse é um grande salto que pode ser dado na Educação, através de uma estratégia muito simples que é a criação desses pactos de convivência, ou combinados, como se chama no Brasil, ou contratos pedagógicos. O importante é que esses contratos sejam resultado do trabalho colectivo dos educandos.

O tema principal do seu curso é a liderança. Que tipos de liderança existem?

Tradicionalmente existem quatro tipos de liderança, que seriam o líder autoritário, o líder paternalista, o líder sabe-tudo e o líder manipulador. Estes têm sido ao longo da História os principais modelos de liderança e que terminam influenciando os paradigmas, os modelos mentais de liderança que todos nós temos. Então, se formos muito honestos connosco mesmos e fizermos uma auto-avaliação bem franca para percebermos, cada um de nós perceberá que em certas áreas da nossa vida há algo de autoritário, de paternalista, de sabe-tudo e de manipulador. Esses modelos, cada um tem os seus pontos positivos, mas no final das contas todos eles buscam concentrar o poder nas mãos do líder, de diferentes formas e com diferentes estratégias. É o que nós precisamos hoje para poder realizar as mudanças que a sociedade necessita, as transformações que qualquer organização e o mundo como um todo necessita, não nos poderá ser propiciado por essas formas tradicionais de liderança.

Para além dessas quatro formas tradicionais de líderes que já falámos, o líder autoritário, o líder paternalista, o líder sabe-tudo e o líder manipulador, temos uma quinta figura, que é o líder democrático…

Isso. A liderança democrática fou um grande avanço em relação a esses quatro modelos tradicionais na medida em que o líder democrático precisa de ser representativo e precisa de ser participativo no seu processo de tomada de decisões. Então, com certeza que foi um avanço. Só que quando perguntamos às pessoas quem foi alguém que exerceu uma profunda influência, uma influência positiva e transformadora na sua vida, as qualidades, as características que as pessoas indicam nesse líder que conseguiu promover alguma mudança são qualidades e características da dimensão espiritual do ser humano. Então, invariavelmente, dizem que era um líder amoroso, bondoso, era honesto, ético, era uma pessoa dedicada a um ideal, disponível para ajudar o próximo. Então nós vemos que para um líder ter esse poder transformador ele precisa de ter qualidades que não estão necessariamente incluídas na liderança democrática. Em outras palavras, nós precisamos de um novo modelo de liderança, que incorpore claramente e explicitamente a dimensão espiritual do processo de liderança.

A Comunidade Bahá’í tem o seu modelo de liderança, liderança moral, é assim chamado. É este um modelo adequado às necessidades do mundo dos nossos dias?

Exacto. Diversos Bahá’ís, pesquisadores da Comunidade Bahá’í, em diversas partes do mundo, têm chegado a essa conclusão e apresentado essa visão de um novo paradigma de liderança, que é a liderança moral e ética. Essa liderança tem como propósito o serviço, servir a colectividade, buscar sempre os melhores interesses da Humanidade como um todo. É um líder que busca cumprir com a regra áurea de todas as religiões, inclusivé da Fé Bahá’í, que diz «faça ao outro o que gostaria que fosse feito a você, e não faça ao outro o que você não gostaria que fosse feito a você». Essa é a regra áurea do Cristianismo, do Judaísmo, do Islamismo, do Budismo, da Fé Bahá’í, de todas as religiões, e isso em si já é a essência de um líder ético. Além disso, a liderança ética e moral tem como propósito promover a transformação, a transformação de si mesmo e a transformação social. Então o líder precisa de ter esse compromisso de ajudar a Humanidade a encontrar um grau cada vez mais avançado de Unidade, de Unidade na Diversidade, respeito pelas diferenças, acolhimento e valorização dos vários povos, grupos étnicos e culturas que existem no mundo. Portanto, a liderança moral e ética é uma visão de liderança que incorpora as dimensões do ser humano, dimensão espiritual, emocional, psicológica e física.

sexta-feira, setembro 2

Meus lindos olhos

Meus lindos olhos, qual pequeno Deus
Pois são divinos, de tão belos os teus.
Quem tos pintou, com tal feição
Jamais neles sonhou criar tanta imensidão.

De oiro celeste,
Filhos de uma chama agreste
Astros que o alto céu revestem
E onde a tua história é escrita.

Meus lindos olhos, de lua cheia
Um esquecido do outro, a brilhar p’rá rua inteira.
Quem não conhece teu triste fado
Não desvenda em teu riso um chorar tão magoado.

Perdões perdidos
Num murmúrio desolado
Quando o réu morava ao lado
Mais cruel não pode ser.

Este fado que aqui canto
Inspirou-se só em ti
Tu que nasces e renasces
Sempre que algo morre em ti

Quem me dera poder cantar
Horas, dias, tão sem fim
Quando pedes só para mim
Por favor só mais um fado.

Meus Lindos Olhos (à Memória de Zé Nunes), com letra de Mafalda Arnauth,
in Mafalda Arnauth, de Mafalda Arnauth

A moda do Aloe Vera

O Aloe Vera está hoje na moda. Aquela que é vista como a «Planta Miraculosa» saltou das mais ou menos escondidas ervanárias para as prateleiras dos supermercados, atingindo uma vasta gama de produtos. Como nas imagens dos desertos dos westerns americanos, a planta do Aloe é vista como um cacto cheio de vida. O Aloe Vera, que é utilizado há cerca de 6 mil anos, é um dos produtos mais em voga na Medicina dita alternativa

O Aloe Vera tem sido desde há muito apresentado como a «Planta Miraculosa», o «Curativo Natural» ou a «Planta das Queimaduras».
E este desde há muito conta já com perto de 6 mil anos. É do Antigo Egipto de 3 500 A. C., num papiro perdido no tempo, que datam as primeiras referências ao Aloe Vera. Mais tarde, veio a descobrir-se que também as ancestrais culturas chinesa e indiana recorriam à «planta dos milagres», a par de médicos das civilizações da Grécia Antiga. Aliás, conta a lenda que um dos primeiros vultos ilustres da História a recorrer ao Aloe Vera foi Alexandre, o Grande, a conselho de Aristóteles. Alexandre invadiu a ilha de Socotra, no Oceano Índico, com o intuito de aí se abastecer da planta medicinal, de forma a curar os milhares de soldados feridos em batalha. Antes, outros nomes, também eles de relevo na História, utilizaram o Aloe, como as rainhas do Egipto Nefertiti ou a mítica Cleópatra, que a par dos banhos com leite de cabra usava a planta como tratamento de beleza.
Mas então para que serve exactamente o Aloe Vera? Nos nosso dias encontramos o Aloe em iogurtes, em cosméticos, em detergentes, em pastas de dentes, em perfumes, em pomadas, em comprimidos... Enfim, uma miríade de produtos que faz com que nos perguntemos afinal o que é que não contém Aloe? A planta actua fundamentalmente em duas dimensões: a nível dermatológico e a nível gastro-intestinal. Pode também ser utilizado em problemas de asma, infecções várias, artrite, fadiga pós-viral, lúpus eritematoso e até no stress, facto comprovado pelos testemunhos daqueles que dizem que, após terem recorrido ao Aloe, se sentem mais tranquilos e calmos, com a sensação de bem-estar a vencer a batalha com a ansiedade.
Mais especificamente, o Aloe pode resolver situações relacionados com a pele como eczemas, psoríase, úlceras, queimaduras, acne, picadas de insecto e mordeduras de animais. No que diz respeito a perturbações intestinais, a colite, a divertículose e a síndrome do intestino irritável são algumas das doenças que podem ser aliviadas com a utilização do Aloe Vera.
As possíveis utilizações são portanto muito variadas, mas é de extrema importância consultar um naturopata ou homeopata antes de iniciar qualquer tratamento. Isto porque o Aloe pode ser usado de formas diferentes, para além de existirem cerca de 200 espécies da planta. No entanto, apenas quatro ou cinco possuem propriedades medicinais, sendo o Aloe Vera Barbadensis Miller o mais potente e aquele que é designado como o verdadeiro Aloe. Os Estados Unidos são um dos maiores produtores a nível mundial, com extensas plantações e uma verdadeira indústria de distribuição. É também americano o organismo que regula a quantidade de Aloe Vera presente nos vários produtos da gama, através de um selo de aprovação que é colocado nas embalagens, emitido pela International Aloe Vera Science Council (Conselho Internacional da Ciência do Aloe Vera). Claramente, quanto maior for a concentração da planta no produto, maior será a sua eficácia, sendo que o Aloe terá sempre de ser o principal ingrediente da solução. O Aloe Vera funciona como um fornecedor rico em elementos nutritivos que promovem o crescimento celular e o aumento da resistência não específica do organismo, o que leva à cura do mal e à solução do problema do qual o paciente padece.
O aspecto do Aloe Vera é o de um cacto suculento, portanto não seco, como o dos chorões que povoam as dunas das praias. Em termos de Botânica, o Aloe pertence à família das açucenas, relacionada com as cebolas, os alhos e os espargos. O produto Aloe Vera é feito através da mistura do gel interior das folhas amadurecidas e da seiva exterior, podendo ser recolhido, armazenado, preservado e engarrafado, dando origem a um produto igual ao sumo da planta natural. Como nas imagens dos desertos dos westerns americanos, a planta do Aloe é como um cacto cheio de vida.
O interior da folha do Aloe Vera possui vários princípios activos, como vitaminas, tendo a particularidade de ser umas das poucas plantas no mundo que possui a vitamina B12, minerais, amino-ácidos, açúcares, que actuam no sistema imunitário, enzimas, que dividem os alimentos e ajudam na digestão, esteróides vegetais, que agem como anti-inflamatórios, saponinas, que são um potente agente anti-microbiano, lenhina, que ajuda à penetração nas camadas mais profundas da pele, antraquinonas, conhecidas pelo seu papel no alívio da dor e pelas suas propriedades anti-bacterianas e anti-virais, e ácido salicílico, composto semelhante à aspirina.

As minhas entrevistas - II

Por ocasião do Dia Internacional da Mulher, celebrado anualmente a 8 de Março, entrevistei Paula Silva, da Comunidade Bahá’í do Porto, sobre o papel fundamental da Mulher na construção de uma nova Humanidade. A Paula esteve presente em várias conferências internacionais e nacionais sobre o tema das mulheres, no Congresso Mundial de Londres, nas reuniões internacionais sobre a Mulher em De Poort (Holanda), Genéve, e Madrid, com a presença de Rúhíyyih Khánum, e em acções de formação no Porto, Braga e Viana do Castelo. Para além disso, é professora do ensino secundário, e, talvez mais importante, é mãe e avó, pelo que a cada palavra sua brota sabedoria e conhecimento ganho por experiência de vida.
Vamos então saber o que a Paula tem para nos dizer.

Qual o papel e o enquadramento da mulher na Religião Bahá'í?

A mulher na Religião Bahá’í tem uma importância nunca igualada, de grande responsabilidade: é a primeira educadora no seio da família e deve participar na sociedade em todos os sectores. Tem que ter um papel activo na construção de «Uma Nova Ordem Mundial».
Para isto tem que se libertar de todos os preconceitos: de sexo, de raça, de religião, de classe, de nacionalidade.
Tem também que atingir lugares de decisão, os órgãos administrativos, tanto a nível local, como nacional e internacional.
Bahá’u’lláh diz que a Humanidade é como uma ave, em que uma asa representa o homem e a outra a mulher. Só com as duas asas em perfeito equilíbrio a ave poderá voar harmoniosamente.
Assim poderá, num futuro, ser estabelecida a Paz, a unidade global e uma Nova Ordem Mundial.
A mulher necessita, pois, de ser esclarecida, activa e metódica. Precisa também de ter muita fé e perserverança, num mundo em confusão e inquietação como é aquele em que vivemos, no momento.
As mulheres necessitam de ter os mesmos direitos, oportunidades e responsabilidades, em todos os aspectos da vida, assim como os mesmos meios, e o mesmo poder na mesma base. É urgente pois a sua educação aprofundada.
A Paz só será estabelecida quando se eliminarem as desigualdades entre homens e mulheres, entre pessoas dos mesmos países e entre nações.

Sei que esteve presente em várias reuniões a nível internacional sob o tema das mulheres, nomeadamente em três conferências internacionais, em De Poort, Genéve e Madrid. Fale-me resumidamente da sua experiência.

Foi da maior e da mais elevada importância. Representou a tomada de consciência perante o tema em questão, e os seus problemas, assim como a compreensão dos objectivos a cumprir a nível local e internacional. Foi analisada a percentagem de mulheres que faziam parte das instituições e assembleias, assim como o papel que tinham na família e na sociedade na Europa e nos vários continentes. Constatou-se que havia apenas uma ou duas mulheres nas instituições, o que é francamente pouco!

Nas Escrituras Sagradas é enfatizado o papel primordial das mulheres na Educação das Crianças, como responsáveis pela geração vindoura, e como promotoras da Paz Mundial. Como é que isto se explica em termos práticos?
A mulher é considerada a primeira educadora. Tem assim um papel insubstituível de responsabilidade na célula base que é a família. No desenvolvimento harmonioso da criança, psicológico e espiritual. Ela é responsável pelas gerações vindouras, assim devem ser realizadas reuniões regulares com as crianças e os jovens até à puberdade e fim da adolescência: cultura, trabalho de carácter e do espírito da criança, pois mais tarde já não é idade adequada para mais aprendizagem.
Em relação ao papel das mulheres como promotoras de Paz, isso tem a ver com o que já disse sobre a tomada de consciência e posição das mulheres nos governos do Mundo, pois elas possuem uma sensibilidade e um tacto diferentes.

O rapaz que ouvia canções de sonhar

Era uma vez uma morsa chamada Shibolet. Shibolet vivia no Pólo Norte, juntamente com a sua numerosa família: o seu irmão Peirce, a sua irmã Pregnância, o seu pai Análogon e a sua mãe Sémeion.

Como estava farto do frio do Pólo Norte, Shibolet resolveu partir em busca do calor e de novas paragens. Partiu então em direcção ao Sul. Desceu pela Gronelândia e deparou-se com o mar vastíssimo. Como ultrapassar tal barreira? Viu então que havia carreiras regulares da TransAtlântico, entre a Gronelândia e Reykjavik, na Islândia. Decidiu-se e embarcou.

No barco encontrou muita gente. Uma gaivota inglesa, que se chamava Gladys, foi a primeira que o cumprimentou. Disse-lhe que conhecia aquela travessia como as penas das suas asas, já que estava sempre a fazê-la. Isto porque, uma vez saída de Dover, a sua terra natal, limítrofe com Calais, no verdadeiro Velho Continente, Gladys perdeu-se nas Highlands e foi parar à Islândia. A partir daí tudo esqueceu e andava desorientada naquele barco, de Reykjavik para a Gronelândia, da Gronelândia para Reykjavik,...

A segunda criatura que Shibolet conheceu foi um gafanhoto bem verdinho chamado Tomé. Enrolado num cachecol vermelho, gorro enfiado na cabeça, Tomé tiritava de frio. Mas, como dizia, amiúde, o frio, nem que fosse um glaciar maior do que o mundo, nunca o venceria, nunca venceria o seu sonho de atravessar o planeta de norte a sul, qual Willy Fogg da nossa era. Nascido no seio de uma família da alta burguesia, Tomé queria conhecer o mundo tal como ele é; não apenas da janela dourada do seu palácio. Um sonho e um desafio nobres. Nobres de valor moral... e nobres de valor monetário.

Mas quem mais o fascinou foi Wicca, uma loba de olhos cristalinos, mais profundamente azuis do que um coral do Cabo Espichel. Wicca nasceu em Budapeste, mais propriamente em Buda. Paradoxalmente desiludida e esperançosa com a queda do Comunismo, Wicca partia agora em busca da felicidade; mas uma felicidade que ela não sabia muito bem o que era. Já tinha ido à Austrália, à Grande Barreira dos Corais (donde, quem sabe, lhe ficou a profundidade do azul dos seus olhos), já tinha ido à Índia, local muito na moda para retiros espirituais, já tinha ido à Patagónia, ao chamado "fim do mundo", e tal como o nome indica, nada encontrou. E agora estava aqui, vinda do Estreito de Bering, onde tentara perceber se o Capitalismo e o Comunismo, aí tão próximos, eram realmente tão diferentes nas suas ambições.
E é a partir daqui que a viagem de Shibolet ganha um novo significado. Aliado à busca, ao conhecimento do mundo, surge agora o desejo de encontrar essa tal felicidade. Soube que a partir daí não mais abandonaria Wicca.

E entretanto chegámos a Reykjavik. O barco atracou e Shibolet, Wicca, Gladys e Tomé saltaram para o cais, juntamente com meia dúzia de passageiros. A primeira imagem da cidade era a de um caldeirão, daqueles que estamos habituados a imaginar quando ouvimos histórias de bruxas. O fumo das chaminés, das furnas, das caldeiras criavam essa atmosfera. Mas era o calor que emanava das casas em choque com o frio que fazia aquela fumarada toda. "Anda daí!", disse-lhe Wicca. "Onde vamos?". "Segue-me e confia em mim!".

Chegaram a um sítio que lembrava uma banheira gigante, com água borbulhante e esverdeada. Wicca mergulhou e ficou a olhar para Shibolet. "Então? Não me digas que tens frio! Ou medo...". Dominado por uma fúria juvenil Shibolet saltou violentamente para a água. E então olha à sua volta e vislumbra altas montanhas cobertas de neve, com o topo envolvido em misteriosas nuvens. O céu está escuro, carregado, prestes a rebentar em trovões e relâmpagos. Um estrondo ribomba, estremecendo as entranhas da Terra, e chuva gelada e cortante começa a cair. Mas Shibolet está mergulhado numa atmosfera de calor sufocantemente macio, e o quente vence finalmente o frio.

De repente Wicca mergulha e não volta à superfície. Preocupado e em pânico, Shibolet vai ao fundo. Sente que lhe puxam a perna e por momentos hesita: deverei resistir e emergir para a vida ou deixar-me ir e furar para a morte, em busca de um novo mundo? Invadido pelo desejo do desconhecido, mas preparado para o pior, deixa que o fundo o leve. Fechando os olhos com força vê o universo de estrelas brilhantes à sua frente, estrelas que progressivamente se apagam até o breu dominar.

Com as pálpebras doridas, abrindo primeiro o olho esquerdo e depois o direito, Shibolet ouve a voz de Wicca a chamá-lo. Um cheiro a mar sobe-lhe pelas narinas, lembrando-lhe a sua casa e a sua família no Pólo Norte, e acolhedores raios de sol acordam-no de vez. Recortada pela luz solar Wicca estava à sua frente. "Segue-me e confia em mim!". E correm ao longo da beira-mar. Correm quilómetros e quilómetros, sem que a praia acabasse. Finalmente chegam a uma gruta gigantesca, com uma entrada proporcionalmente inversa. Shibolet ia desafiar Wicca a entrarem, mas mal iniciou a sua frase já a loba tinha desaparecido no interior da rocha. Seguiu-a.

O interior da gruta era constituído por uma espécie de hall de entrada, bastante largo e alto. No topo uma abertura permitia a comunicação com o mundo exterior e a passagem de luz. As paredes deste hall estavam revestidas por arbustos verdejantes, o que tornava a atmosfera bem fresca. Os raios brilhantes de sol que invadiam a sala de repente esfumaram-se, dando lugar a uma copiosa chuva. Shibolet e Wicca, como que impelidos por uma mola, dirigiram-se rapidamente para o centro do hall, onde podiam receber a água pura. Sentiam o líquido fluir pelos seus corpos e nunca se haviam sentido tão puros, tão próximos da Natureza, tão próximos da sua verdadeira essência. Durante alguns minutos a chuva continuou a cair, até que, aos poucos, foi abrandando, parando por completo. Um silêncio apenas cortado pela água a escorrer pelo verde das paredes, que dava origem a pingos que caíam como setas no chão da gruta, dominava a atmosfera. "Vamos.", disse Wicca. Caminharam, e caminharam, e caminharam pelas galerias da gruta. Por fim acederam a uma sala em tudo semelhante ao hall de entrada, com a diferença residindo na abertura para o exterior, que era agora gigante, permitindo vislumbrar um deserto vastíssimo. Saíram. Dois camelos estavam a saciar a sede e a acumular reservas num pequeno oásis que existia à saída da gruta. "Já montaste um camelo?". "Eu nem sei o que é um camelo, Wicca...". "Então segue-me.". Já acomodados no dorso de um camelo seguiram a sua viagem.

O ar começou a encher-se de um fumo negro e pestilento que a eles se agarrava. No horizonte começaram a surgir várias chaminés fumegantes. "Chegámos a Ulaanbaatar, a capital da Mongólia", esclareceu Wicca. Uma nuvem espessa e negra envolvia a cidade. Ao chegarem deparou-se-lhes um emaranhado de ruas, cujas fachadas dos prédios, escurecidas e gordurosas, não escondiam o interior decadente de uma das mais pobres nações do mundo. Os oleodutos, com o início da exploração do petróleo, começaram a invadir e a modificar a fisionomia da cidade há poucos anos, tornando-a ainda mais metálica e suja. Ao deparar-se com esta "natureza morta", uns dos locais da Terra onde podemos vislumbrar o fim do mundo, Shibolet aprende o que não é a felicidade mas sim a miséria, e até onde o homem pode descer na perspectiva de uma salvação económica, nem que essa seja apenas uma magra e tímida hipótese.

Ao vaguear pelas ruas, na sua maior parte vazias, mas por vezes cruzadas por seres "mortos-vivos", sem alma nem espírito, sem rumo nem orientação, encontram um jovem enrolado em vestes tradicionais, recostado a uma fachada do que fora outrora o Banco Nacional da Mongólia, cujos vidros partidos enfatizavam a ruína a que a cidade e a nação mongóis tinham chegado. O jovem ouvia música através de um walkman, luxo da cultura e economia ocidentais. "Como te chamas?". "Neste país já todos perdemos o nosso nome. De que serve ele se não há ninguém para entoá-lo, dar-lhe vida? Aqui não interessa como se chamam as coisas ou as pessoas. Aqui o que interessa saber é se amanhã estaremos cá...". "O que ouves?". "A única coisa que me faz não estar aqui, que me faz viajar pelo mundo perfeito; tomar banho numa praia de areia fina e branca, percorrer uma gruta, viajar pelo mar, conhecer o topo do mundo, enfim... A única coisa que me faz viver. Verdadeiramente!"

Já refeito do choque que foi a estadia na cidade negra de Ulaanbataar e depois de deixarem o rapaz que ouvia canções de sonhar Shibolet apercebeu-se o quanto afortunado era. Sentiu-se ligado ao rapaz que ouvia canções de sonhar. O rapaz que ouvia canções de sonhar vivera o mundo nos seus sonhos na sua imaginação. Também Shibolet tinha vivido o mundo. Verdadeiramente. Só que não o tinha percebido. Uma vontade irrefreável apoderou-se do seu espírito: queria voltar ao Pólo Norte. Aí também poderia viver o mundo, através da sua imaginação. Poderia ir aonde quisesse, e de cada vez que visitasse certo sítio poderia imaginá-lo diferente na próxima vez que lá voltasse. Um mundo infinitamente mais vasto estava ao seu alcance.

De volta a Reykjavik e às carreiras da TransAtlântico Shibolet reencontrou Gladys, sempre de trás para diante e de diante para trás. Encontrou também Tomé, que regressava a casa cansado e desiludido. Afinal o mundo não era tão perfeito como sempre lho tinham dito. Decidido a fazer algo regressava a casa para se despedir da família e de todos aqueles que lhe tinham incutido a imagem de um mundo mágico mas irreal. Queria despedir-se dessa gente e encetar um novo caminho. Estava convencido. Iria candidatar-se e ser o próximo Presidente dos Estados Unidos da América!

Já em casa Shibolet viveu angustiado por nunca poder viver as coisas na sua plenitude, mas ao mesmo tempo completamente feliz por estar sempre a descobrir algo de novo, por estar sempre a fazer erros e a aprender com eles. Aliás, nada lhe dava mais prazer do que fazer algo pela segunda vez, onde pudesse aplicar o que tinha aprendido primariamente.

De Wicca nunca mais ouviu falar. No entanto sentia que ela tinha encontrado o que sempre buscara, que ela estava feliz.

Shibolet e Wicca nunca mais se viram nesta vida terrena, embora tivessem permanecido ligados para sempre.