Tigre da Tasmânia

«Eu escrevo como se fosse salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida» C. Lispector

terça-feira, agosto 29

Ponto final no verão

O manto de estrelas que rasga o céu da casa do pinhal é imponente. Ali o azul escuro quase negro é maior e os pontos amarelos brilham mais que noutros sítios. Por entre as copas das oliveiras, na companhia das silvas já carregadas de amoras porque o Verão foi muito quente, ao lado das figueiras, com o zumbido dos pinheiros entrecortado pelo canto dos castanheiros, espreito o céu, eu e o Sebastião, o rafeiro que há uns anos passou a fazer parte de nós e do nosso quotidiano. Junto ao poste de luz os mosquitos perdem-se numa dança louca. É melhor assim. Por enquanto tenho os braços e o pescoço a salvo das suas picadas, mas não por muito tempo, já que no dia seguinte acordo sorteado pelo enxame. Este Verão saiu-me a lotaria...

No ano passado, neste mesmo alto em que me encontro, ponto de encontro entre o Ribatejo, a Beira Litoral, a Estremadura e com a Beira Baixa não muito longe, avistei a parede de chamas que quase devorava o concelho. Passados 365 dias tudo está mais calmo, mas há que preparar desde já 2007.

Amanhã, de novo de comboio, rumarei a Lisboa. É o ponto final no Verão.

Casa velha nova

Gosto de casas antigas. Têm personalidade. Casarões com um sem número de portas, madeira com décadas de vida, barulhos e ruídos, estalidos, estórias para contar, pessoas que já cá não estão mas que deixaram a sua marca, cantos e recantos de um ser vivo. E naquela casa conheço finalmente o mais recente membro da família, o meu primo Diogo, nascido há cinco meses longe, bem longe, noutro continente mais a sul. Desde logo me encanto, e sei que é para sempre. Tomo-o nos braços, passeio-o por toda a casa gigantesca, observamos juntos os montes e serras que rumam a Espanha, conversamos, brincamos, quase que adormecemos quando chega a hora antes das refeições fartas da Beira. Estamos a ganhar fôlego, eu para as bôlas de azeite, para os queijos, para os enchidos, para as empadas, para o cabrito que afinal não chegou, para o caldo verde, para os doces, o Diogo para o biberon. Bem vindo bébé.

Comboiando

O Expresso, na sua tentativa de (re)afirmação antes da chegada do concorrente Sol, resolveu, entre outras iniciativas, publicar uma série sobre os caminhos-de-ferro portugueses ao longo do Verão. Sempre fui adepto do comboio, e sempre que posso opto pela carruagem em detrimento do enfadonho autocarro. Mas a série do Expresso levou-me a querer experimentar linhas que ainda não tinha tido a oportunidade de percorrer. Assim, da Mata (a seguir ao Crato) até Abrantes, depois de Abrantes rumo a Castelo Branco, e de Castelo Branco a Alpedrinha, lá fui eu pelos caminhos de Portugal, como cantava alguém. Linha do Leste, Linha da Beira Baixa, três percursos diferentes.

Andar pela Linha do norte alentejano faz pensar que Portugal é um país gigantesco, sem fim, com paisagens a perder de vista que não acabam no horizonte. São pouco mais de 50 quilómetros o percurso que fiz, mas a imensidão do amarelo do trigo e do verde do sobreiros fazem crer que foram muitos mais.

De Abrantes a Castelo Branco a paisagem muda de figura. O nosso companheiro agora chama-se Tejo. Ao lado dele, quase dentro de água, e há alturas em que o rio parece querer entrar pelos vagões, o que até não seria má ideia dado o calor teimoso do Verão, seguimos rumo à Beira Baixa. Rodeando as margens do maior rio que banha o território nacional estão rochas gigantes, senhoras do tempo que parecem dizer que quem manda ali são elas, mesmo que o ferro da linha tenha tido o atrevimento de por ali andar. Castelo Branco, cá estamos.

Nova mudança de comboio. O apeadeiro de Alpedrinha é o limite. O trajecto é agora vigiado pela serra da Gardunha, que abraça a carruagem (é apenas uma). Aqui e ali avistamos aldeias e povoações, nomeadamente a aldeia histórica de Castelo Novo, imponente, quase desenhada à mão, simétrica elegante, o berço da minha família há gerações atrás. Cinco minutos depois Alpedrinha. Vamos cumprimentar então a família que ali me espera.

No Alentejo o tempo tem mais espaço

Depois de serpentear pelo Ribatejo e chegados ao Alentejo entramos na herdade. Ultrapassado o bosque à la David Lynch é preciso abrir o portão de arame farpado, ritual que se vai repetir sempre que deixamos ou regressamos a casa. Entre penedos redondos gigantescos que parecem bolas de bilhar e vacas alentejanas deitadas indolentemente nos pastos e que nos olham com indiferença ou surpresa, lá seguimos, perigosamente, num cai-não-cai do caminho esburacado. Chegámos. Há que ligar a geradora para sairmos do breu. Não temos rede, não há água quente, a piscina está vazia (e vai demorar dias a encher), estamos no meio do nada, quase nas profundidades do país. Mas estamos juntos, é o que importa. Vamos jogar às cartas, romper a madrugada na batota e no bota-abaixo. Já tarde, seriam três ou quatro da manhã (ali, no Alentejo, o relógio não existe), seguimos na Kangoo, a nossa amiga canguru, e vamos no rally nocturno aos coelhos. Acelera, acelera, que está ali um. E a carrinha quase voa nas curvas apertadas, no asfalto que não existe, até que invade as ervas rasteiras e segue praticamente desgovernada. Paramos. Apagamos as luzes. Estamos no meio do Universo, sobreiros rodeiam-nos, a luz das estrelas ali mais brilhante acompanha-nos. Estamos felizes. Somos grandes e pequenos ao mesmo tempo.

terça-feira, agosto 15

Até amanhã

O mar ondula e ruge calmamente. A areia começa, levezinha, a enrolar e a percorrer o seu caminho. As gaivotas, estarão felizes ou tristes?, vagueiam em círculos fechados sob o céu azul, um azul difícil de alcançar. Lá ao fundo, na linha do horizonte, será a Atlântida?, o Sol, orgulhoso e inchado de laranja, começa a despedir-se no seu número final. Até amanhã.

À luz da lua

As noites tropicais parece que desistiram de Portugal nos últimos dias, depois do assalto recente. E assim não pude repetir a tradição dos mergulhos nocturnos, com a água a escorrer como o arco-íris pela pele, com reflexos de luar. Ou ainda o futebol humano, que há muitos anos não jogo e cujas regras já não recordo, mas que eram uma marca dos verões na praia do Cabedelo, em Viana do Castelo.

Cheirinho bom

Numa das velhas livrarias do Chiado, com aqueles móveis antigos que fazem lembrar as escolas secundárias, ou antigos liceus, que frequentámos, reinava um cheiro de óleo de cedro misturado com perfume de livros, novos e antigos. Será este um dos aromas da Cultura?

A menina do Poço dos Negros

Estava no outro dia a caminho do Bairro Alto, numa rumagem quase ritual, quando passo pela Rua do Poço dos Negros e ouço ao longe:

«Em vez de culpares os outros por tudo devias ver que a culpa também é tua!»

Quem falava era uma menina de 10, 11 anos, dirigindo-se a uma menino também da mesma idade. Afinal os valores ainda andam por aí...

Um pouco de céu

Um Pouco de Céu

Só hoje senti
Que o rumo a seguir
Levava pra longe
Senti que este chão
Já não tinha espaço
Pra tudo o que foge
Não sei o motivo pra ir
Só sei que não posso ficar
Não sei o que vem a seguir
Mas quero procurar

E hoje deixei
De tentar erguer
Os planos de sempre
Aqueles que são
Pra outro amanhã
Que há-de ser diferente
Não quero levar o que dei
Talvez nem sequer o que é meu
É que hoje parece bastar
Um pouco de céu
Um pouco de céu

Só hoje esperei
Já sem desespero
Que a noite caísse
Nenhuma palavra
Foi hoje diferente
Do que já se disse
E há qualquer coisa a nascer
Bem dentro no fundo de mim
E há uma força a vencer
Qualquer outro fim

Não quero levar o que dei
Talvez nem sequer o que é meu
É que hoje parece bastar
Um pouco de céu
Um pouco de céu

Mafalda Veiga