Tigre da Tasmânia

«Eu escrevo como se fosse salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida» C. Lispector

quarta-feira, março 28

A caravela

E depois da tormenta de ver o outro lado do cabo tão próximo, tão ao meu alcance, de não saber se o vento me ia aguentar as velas, eis que consigo dobrar a terra e chegar ao outro lado. Estou em terra firme de novo. Ou finalmente talvez. Passou a ser de novo mais importante a menina que vejo no caminho a brincar com o gato ainda mais pequeno que ela do que o betão, os carros e as suas buzinas ridículas, o fumo dos escapes que matam o verde, as pedintes romenas que invadem o semáforo, o cinzento quase irrespirável. Estou de novo no bom caminho. O balão não rebentou mas agora atónito ainda não recuperou o fôlego. A seu tempo.

domingo, março 25

Gramas de peso

E afastou-se do bulício, do sítio do banco. Rumou para ir dar uma volta. Apanhar ar. Animar-se. Afastar tristezas e vontade de chorar (as lágrimas vieram mais tarde). Sentia-se diferente de todos e afastado de tudo. Posto de lados por ele próprio e pelos outros. Sentou-se noutro banco que não aquele do qual havia saído para ver o céu e o rio.

Ergueu-se e seguiu a esquadria das ruas e dos edifícios, que afinal não são tão direitos quanto se diz. Perdeu-se de novo nas luzes. Embrenho-se na multidão. Abafou-se nos sons da noite. Daqui a umas horas tudo passou. Até à próxima crise. Ele segue a direito.

sábado, março 24

Fico muito mais descansado com esta informação preciosa

Mais ridículo do que o artigo pseudo-sério sobre as habilitações de José Sócrates impresso pelo Público foi a saloiice pegada do editorial a justificar a investigação jornalística (!?).

Telemóveis II

Trabalhar num local com muita gente, e onde quase todos têm dois telemóveis, é quase ensurdecedor ter toda a parafernália a tocar constantemente. Acaba por ser giro identificar de quem é o toque x ou y e perceber que o som dos telemóveis não têm nada a ver com os seus donos. Ou será que têm? Serão extensão da nossa personalidade? Se assim for eu sou um estandarte do «Mais perto do que é importante» (o que até me agrada) e um bem mais banal toque quase administrativo.

Telemóveis I

Ainda não me habituei à nova forma de ditar os números de telefone... Depois do 0936 etc. e do 01 etc. agora quase todos dizem 961 234 567 ou 213 456 789. Muito mais simples é o 96 123 45 67 ou 91 123 45 67 (para identificarmos logo a rede de telemóvel) ou o 21 345 67 89, 22 345 67 89 ou então sim 239 123 456 no caso dos fixos (para localizarmos imediatamente o telefone a nível nacional, Lisboa, Porto, Coimbra, etc.). Manias.

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Depois de muitos textos escritos apenas na cabeça, e a maior parte deles já me esqueci, mais vale pegar de vez no teclado.

segunda-feira, março 19

Vontades

Hoje não me apetece.
Hoje não me apetece falar, hoje não me apetece olhar, hoje apetece-me pausar. Indefinidamente. Hoje apetece-me que o vento que invade as ruas da cidade me leve. Para longe. Sem destino. Sem término.

Hoje apetece-me ouvir cello enquanto atravesso o Tejo no carro da Patita. Hoje apetece-me acelerar pela cidade de madrugada, as ruas vazias, a música ensurdecedoramente alta, os quatros vidros abertos em quatro tufões.

Hoje apetece-me.


Hoje não me apetece.

Só hoje?

terça-feira, março 13

Miguel

Hoje cumpri o primeiro dia da minha decisão de passar a vir a pé para o emprego. À falta do desporto regular habitual junto o agradável ao agradável e limpo a mente durante aqueles vinte minutos de caminhada, rua acima rua abaixo que a nossa Lisboa é feita de muitas ondas. Pelo jardim vejo turistas a gozarem o nosso sol, velhotes a conversarem sobre o que lhes vai na alma, estudantes a estudarem, pessoas a devorarem livros, cães e gatos, pombos, muitos pombos, gansos e patos. Parece que Noé resolveu juntar ali quase tudo.

Mas o quem me chamou a atenção, quem me prendeu o olhar foi uma criança, que teria cerca de dez anos, a idade do meu primo mais novo. Que sorriso radiante ele tinha, que olhos felizes, que alegria de viver exalava.

Por vezes quero voltar àquela época, à idade do meu primo Miguel, brincar como ele, dar chutos na bola, sujar as calças todas de lama e esburacar os sapatos todos, deitar os joelhos abaixo, saltar em cima da cama, fazer a mochila para a escola no dia seguinte.

Bons tempos que não voltam mais.

domingo, março 11

Lá de cima cá para baixo

Hoje subi a uma cadeira, coloquei as mãos no tecto e vi o mundo cá em baixo. Tudo passa por uma questão de perspectiva.

sexta-feira, março 9

Vi-te num copo de coca-cola

Ontem cheguei a casa tarde, sempre tarde, sempre demasiado tarde. Tudo estava às escuras e apenas o aquário se distinguia do breu. Estava sedento. Coca-cola com muito gelo, desejos de madrugada. No copo de vidro, por entre os cubos de gelo, vi-te. Estavas chateada, irritada mesmo. Não percebo a tua frustração. Não me podes pedir impossíveis exactamente por essa razão. São impossíveis e eu sou apenas uma unidade sem poder. Não afasto marés, não arrasto montanhas, não apago o sol nem oculto a lua. Hoje vai ser melhor, tenho a certeza.

quinta-feira, março 8

Mareando

Trago no meu quarto memórias do que vivi. Um osso de baleia de Vila Franca do Campo, uma pedra-pome das Melícias em Ponta Delgada, conchas, búzios e madre-pérolas do Meco, da Caparica, do Cabedelo e da Ursa, areia espalhada de todas as praias onde já fui. Trago o mar no meu quarto. Se fechar bem os olhos e me concentrar consigo cheirar a maresia e escutar as ondas a beijarem a praia.

Trago o mar no meu quarto.

domingo, março 4

A lua de ontem

«Crei em Deus todo poderoso criador do céu e da terra Jesus Cristo seu filho e nosso senhor. Por obra e graça do divino espírito santo S. Igreja Católica (...) Fulano 1 t'o teu e 2 to tirarão o senhor S. Pedro e o senhor S. João. Se t'o deram pela cabeça que t'o tire S. Teresa. Se t'o deram pelo costelado que t'o tire o Senhor S. Tiago. Se t'o deram pela barriga que t'o tire a Virgem Maria. Se t'o deram pelo corpo todo que t'o tire o nosso senhor Jesus Cristo que tem o poder todo. Pai nosso e Espírito Santo.»

Esta é uma das mezinhas que compõem o último livro que li, «Histórias e Superstições na Beira Baixa», compilado por José Carlos Duarte Moura. As gentes da Cova da Beira, e as de Alpedrinha neste caso, recitam esta lengalenga acompanhada por um prato com água e azeite para retirarem o mau-olhado (a presença do Diabo ou acedente colocado por uma bruxa). Há todo um país que desconhecemos, que gira em volta das lareiras acesas, das encruzilhadas onde se diz aparecer o Diabo, da água e do azeite, da boa hora e da má hora, da benzelhoa e das bentas, dos lobisomens e das bruxas. O eclipse de ontem da Lua fez-me pensar em como a Natureza que nos envolve nos pode levar a desenvolver toda uma série de rituais, crenças, histórias e superstições que ainda batem forte no coração e na mente das aldeias mais escondidas. Devemos acreditar no que contam os mais antigos? Devemos experimentar? A verdade é que há muito para descobrirmos e que a nossa capacidade de compreensão é diminuta. Os mistérios hão-de por aí continuar. Como disse Mircea Eliade «O sagrado manifesta-se no mundo (hiero-fania), santificando-o e tornando-o real. O homem toma conhecimento do sagrado porque este se manifesta...». Nós é que não o sabemos interpretar.

Máxima da noite

O único amor incondicional é dos nossos pais.