Tigre da Tasmânia

«Eu escrevo como se fosse salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida» C. Lispector

sábado, abril 28

Recordações da noite que não foi

Os pés cansados, as pernas dormentes, o calor a invadir o peito; a cabeça saturada e os ouvidos a zumbir, está na hora de abandonar o dia e e fechar as portadas até amanhã. Rumo a oriente, a subir a colina, pelo empedrado da cidade, com o barulho a esmorecer a cada passo. Pelas ruas adormecidas caminho, cruzo-me com um ou outro, gatos fogem e grilos (ainda há grilos em Lisboa) manifestam-se. Uma batida constante começa a notar-se, lá para os lados do teatro romano. Sigo os carris do 28, passo a Sé, o Limoeiro mesmo ali à direita, e aproximo-me do teatro. Não há dúvida. Os anos ’80 estão ali vivos, numa festa em casa que parece rebentar as paredes. Páro e penso: entro ou não entro? Já tinha dado a noite por terminada, mas um sentimento de festa ainda lá estava, bem oculto. Durante cinco minutos deixo-me invadir pela movida de há duas décadas atrás, o ar da noite abraça-me e é como se estivesse já no interior do apartamento. Luzes nos rodapés das paredes dão às salas sem portas um ambiente acolhedor. Os sofás e os almofadões estão espalhados pela casa, encobertos por mantas, umas brancas outras de cores garridas. Uns conversam e constroem o seu habitat único, outros deslizam o corpo ao som da música. Uma coisa é comum, o sorriso que domina a cara de todos. «Queres beber alguma coisa?», pergunta-me uma voz? Cabelos cor de mel, olhos verdes como um prado, pele morena da praia. «Sim, vamos beber qualquer coisa os dois». Pelos corredores a voz guia-me, subimos lanços de escadas e vamos até ao topo do edifício. Sentamo-nos a ver as estrelas e a observar a cidade e o rio, cada ponto de luz da outra margem, as casas encaixadas pelo casco antigo de Lisboa. Um gato preto vem aninhar-se ao meu colo. Fecho os olhos, os lábios suaves da voz pousam na minha cara e após isso apenas a sensação macia de pêlos nas minhas pernas de calções. Abro os olhos. Estou de novo cá em baixo, à porta do edifício, ainda a decidir se entro ou não, com o gato preto a enroscar-se em mim. «Nah, fica para a próxima vez», digo para mim mesmo, para a noite, para quem não me vai ouvir.

segunda-feira, abril 23

Lápis de carvão

Deixámos de escrever cartas. Trocámos (e trocamos) os lápis e as canetas por teclas todas iguais em todas as partes do mundo. Não cheiramos o papel nem sentimos a textura das linhas. O que nos escrevem agora num e-mail parece não ter o mesmo valor da expectativa, de algo que foi feito só para nós. Um «a» num teclado é sempre igual, sempre. Um «a» desenhado a lápis é sempre diferente, não há dúvidas sobre isso.
Num das últimas festas onde fui os donos da casa distribuíram postais com a morada já preenchida para que lhes enviássemos de volta, pelo correio, devidamente preenchidos. É um começo, um bom começo.

domingo, abril 22

Todos os dias

«Não fizeste isto!» Cada vez mais colocamos a responsabilidade dos acontecimentos dos outros. O nosso umbigo é o nosso castelo e para além daí apenas existe um fosso, escuro e profundo.

quinta-feira, abril 19

Tapete verde

A vida cada vez mais se assemelha a um jogo de cartas. Jogamos o ás demasiadas vezes, perdemos os jokers e as manilhas, o trunfo raramente é nosso. E na batota vamos descartando pessoas pelo caminho, como num jogo de paciência. Até chegarmos ao final com meia dúzia de cartas na mão. E o conforto saudável de saber que essas são o nosso trunfo, o nosso baralho e a nossa cor.

segunda-feira, abril 16

Origami

Os meus últimos anos têm-se pautado por um ziguezague enorme de sítios, pessoas, sentimentos e situações. Vivo (n) um turbilhão de sentimentos como dizia um heterónimo. Procuro sempre algo melhor, que me preencha e satisfaça, não me contento com o bom, não convivo com o bem. Busco o óptimo e o ideal. Por isso também me chamam (ou pensam) de salta-poçinhas. Instável, pouco lutador, mimado. Quando é exactamente o contrário. As poças que salto são para me desviar da chuva, da lama e do pântano. Olho sempre para a frente, por mais que me tenha que desviar, que tenha que andar 100 quilómetros de atalho para poder ultrapassar o desfiladeiro. E atravessá-lo.

domingo, abril 15

Como uma pauta

Queria ser uma nota de música. Um dó ou um fá, que ao ré e ao mi nunca achei muita piada. Poder andar por aí a voar, a saltar dos rádios dos carros ou das colunas dos bares e discotecas, passear por uma sala de concertos ou estádio de futebol, soltar-me de um violino ou ecoar por um piano. E ser entendido por toda a gente, por todo o mundo.

quinta-feira, abril 12

Por aí

Parece que o Governo quer instalar mais radares e câmaras nas estradas. Depois do Porto e de Lisboa, seguem-se algumas estradas nacionais. Há até quem já fale nas ruas. Orson Wells não estava errado nem utópico… O big brother está de facto na rua e na vida de todos nós.

quarta-feira, abril 11

Dia do meio

Já falei neste assunto uma vez e volto à carga. É necessária uma nova organização do trabalho. Para não nos esgotarmos e para não criarmos anti-corpos ao emprego é preciso mais tempo de descanso e de pausa. Proponho um novo calendário: semanas de oito dias, cinco de trabalho e três de fim-de-semana. As segundas-feiras não custariam tanto e a semana renderia muito mais, sem esgotamentos às quartas como cada vez mais acontece. Nome para o novo dia? Dia do meio quem sabe…

segunda-feira, abril 9

Cacos e caquinhos

No outro dia fui à Feira da Ladra. É de facto um mundo à parte. Se a história fosse um bolo daqueles que vemos na banda desenhada ali estaria com certeza um fatia bem grande da história de Lisboa e do país. Quadros, roupa, jóias, móveis, sapatos, gira-discos, loiça, espelhos, discos de épocas distantes, na Ladra há de tudo. E em cada banca fui encontrando peças de arte já conhecidas nas várias casas de família. Porque uma visita à Feira da Ladra deixou-me esta sensação, a de visita a casa das pessoas, aos seus objectos, as coisas com as quais convivem todos os dias e que nos conhecem melhor do que qualquer outra pessoa.

domingo, abril 8

Quarto branco sem paredes

Sento-me na banheira, pernas dobradas, joelhos encostados ao peito. A água quente corre como um rio descontrolado, o fumo enevoa a casa de banho. Sinto-me protegido, eu que nunca achei que precisasse de protecção.

sábado, abril 7

Reflexos

A cidade está cheia, pessoas por todo o lado, vozes diferentes, nacionalidades múltiplas. Mas eu sinto-me só, cada vez mais.