Tigre da Tasmânia

«Eu escrevo como se fosse salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida» C. Lispector

domingo, outubro 26

'O' justiceiro

'Tantas coisas deveriam ser repensadas nas notícias! Por exemplo, a maldade goza actualmente de considerável prestígio no mundo das notícias. Um entrevistador que faz um político parecer estúpido e mau está no caminho para se tornar um herói. Começou com os políticos. E agora espalhou-se por quase todos os alvos possíveis. Temos um prazer secreto quando alguns filmes são desfeitos por um crítico. Recebemos de bom grado denúncias sobre estrelas do desporto. Há público a postos para o que faça o primeiro-ministro ou o Presidente parecer tonto; aprovamos quando os gerentes de bancos são reduzidos a idiotas ou as celebridades a cabeças de vento mimadas, envelhecidas e batoteiras. Jornalistas de todo o mundo fizeram carreira sendo terríveis para todos os que lhes apareceram no caminho. Quando nos divertimos com 'notícias más' não pensamos que estamos a ser cruéis sem sentido. O prestígio da maldade baseia-se em assunções confusas, que vão contra as melhores ideias do jornalismo. Sim, é tarefa do jornalismo ser céptico, explorar além da história oficial e fazer perguntas para revelar a verdade. Mas a maldade não tem nada a ver com esta espécie de cepticismo forense aplicado a situações complexas.'

Excerto de uma entrevista ao filósofo Alain de Botton na Revista do Expresso da semana passada, a propósito do seu mais recente livro 'As Notícias: um manual de utilização'

Não estando a exercer a profissão de momento (já lá vamos), a verdade é que Comunicação e Jornalismo foram algumas das matérias que estudei mais aprofundadamente na faculdade e voltar a elas é sempre uma actualização de conhecimentos e desenvolvimento de ideias.

Não estou a trabalhar como jornalista há dez meses (pelo menos na concepção pura e dura daquele que escreve, relata ou transmite diariamente em jornais, rádio ou televisão) e nem sei se algum dia vou voltar. Mas também é verdade que todos nós somos jornalistas, todos nós somos repórteres, todos nós temos uma visão do mundo, uma forma de ver as coisas, que acabamos por relatar, para nós mesmos, à família ou aos amigos. Outros há que têm o privilégio de mostrar a sua visão numa base mais alargada. São esses os jornalistas profissionais. E já agora num pequeno aparte, todos têm opinião e ninguém é um mero espelho, sem ideologia e sem sentimentos ou sensações. Que naturalmente trespassam para o outro, sejam em linguagem verbal ou não verbal.

Este excerto de uma das resposta do Alain de Botton fez-me recordar algumas situações pelas quais passei nas redacções onde tive o privilégio de trabalhar. Esta sensação de ser 'O' justiceiro, aquele que sabe tudo, aquele que está ali para mostrar como os outros são incompetentes e só fazem asneiras, enfim, o papel sacrossanto de julgador e juiz, esta é uma descrição que infelizmente assenta que nem uma luva em muitos jornalistas. A máxima parece ser obter sangue, suor e, se possível, lágrimas. Quanto pior, melhor. Trata-se de uma sanha e de uma quase perseguição, que justamente me levou muitas vezes a sentir-me peixe fora d'água.

Felizmente há jornalistas que acreditam que a profissão não é como ser o Deus mau de Saramago (estou a lembrar-me do 'Caim'), e que ser um bom jornalista não passa por ridicularizar o outro e apenas andar atrás de lados podres ou sombrios.

quarta-feira, outubro 22

Leituras para (sobre) viver

Não gosto de deixar livros a meio. Usando a frase feita, é como ir a Roma e não ver o Papa.

Aqui em cima, no topo do blog, tenho citada uma frase de C. Lispector, que diz 'Eu escrevo como se fosse salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida'. É também um pouco essa a minha posição. Leio todos os dias. Nem que seja uma página já na cama, com um olho fechado e outro aberto. E no dia seguinte tenho que reler porque a atenção já não era a ideal. Mas leio sempre.

Há quem alimente o corpo com vitaminas, proteínas e sais minerais (todos nós). Há quem alimente a alma e o espírito com orações e meditações (uma grande maioria). Há quem se alimente de leitura (como eu).

Isto para falar de um dos últimos livros que li (ou melhor, devorei, já que tempo livre não me falta): 'Os piores contos dos Irmãos Grimm'. Trata-se de escrita a quatros mãos entre o Luis Sepúlveda e Mario Delgado Aparín. O Sepúlveda é um dos meus escritores favoritos e acho que já li tudo ou quase tudo dele. e daí, naturalmente, há uns anos quando vi este livro na FNAC, é claro que o comprei.

Comecei a lê-lo na altura, não gostei e coloquei de lado, para mais tarde. O mais tarde chegou neste ano de 2013, em que para além de estar desempregado há muitos meses (não é preciso ter vergonha de o dizer), ando a reciclar todos os livros que possa, até porque o orçamento não chega para tudo e as páginas compradas são objectos de luxo neste momento. Dou a volta pelas prateleiras cá de casa, dou a volta pelas estantes de Alvaiázere (a outra casa, a do pinhal), e assim vou fazendo pilhas e pilhas de livros para ir lendo. Aliás tenho os livros daqui e os livros de lá. E quando os termino voltam todos à sua proveniência, ao local da estante onde estavam arrumados. Cada coisa no seu lugar.

Este 'Os piores contos dos Irmãos Grimm' pretende ser uma paródia bem ao jeito sul-americano mas que nada tem a ver com os autores de contos infantis. Tem alguns pormenores engraçados, algumas situações caricatas, e permite acima de tudo viajar na imaginação para o continente mais ao sul. E é só. Confesso que me obriguei a terminar o livro. Levei apenas 'Os piores contos dos Irmãos Grimm' para a minha semana em Leeds, para não me poder dispersar antes de dormir a ler outras coisas. Muitas frases, se calhar páginas inteiras, passaram-me pela frente sem que eu dispensasse a mínima atenção, quase em piloto automático. Mas a verdade é que terminei o livro. Com a sensação de dever cumprido. E por estes dias são estas 'vitoriazinhas', estes objectivos mínimos e quase ridículos para quem tem uma vida como deve ser, que vão contando e insuflando oxigénio todos os dias. Para o dia seguinte.



segunda-feira, outubro 20

Leonora de Buda

Um dos últimos anúncios de emprego a que respondi (e já lá vão dez meses...) pedia que enviasse um texto em forma de retrato com cerca de cinco mil palavras sobre uma figura pública ou alguém que eu conhecesse. Aqui fica o que enviei. Claro que nem é preciso dizer que não houve resposta. Há quem me diga que temos que aceitar que há pessoas melhores que nós que são escolhidas. E com certeza que há. Mas quando se pede uma prova há que depois dar o resultado.

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Leonora de Buda

Leonora de Buda, Buda de Budapeste, atravessou a Europa nazi, refugiou-se na Dinamarca mais ou menos livre, mas foi em Lisboa e no Estoril que encontrou a liberdade e a força para viver.

Leonora de Buda, que ficou conhecida por Nora de Buda, ou simplesmente a amiga Nora, nasceu em Budapeste, capital da Hungria, numa família com posses, como é costume nas famílias judias. O que podia ser uma vantagem à partida, sem dificuldades económicas e com uma rede de apoio garantida como é o mundo judeu, tornou-se no maior dos azares, já que Nora era criança quando Hitler e o nazismo tomaram conta da Europa e invadiram Budapeste.

A Nora nasceu na parte maior da capital da Hungria, Buda, que é também a mais rica. Daí o nome, Nora de Buda. Peste é a parte pobre da cidade do Danúbio e a ilha Margarita é palco quase reservado apenas para turistas.

Mas voltemos à Nora. Ainda criança viu-se então rodeada de Hitlers e Himmlers Goebbels e o destino só podia ser um: fugir, e o mais rapidamente possível. Da Hungria conseguiu chegar à Dinamarca, rumo a uma terra supostamente mais livre mas mais próxima do cancro nazi, atravessando o centro da Europa, com todos os perigos daquela época em que as sombras dominavam as luzes. No meio da calamidade, Nora acabou por desenvolver uma grande capacidade de relacionamento pessoal, com certeza para conseguir escapar de situações complicadas, e adquiriu competências excepcionais em dinamarquês, francês, inglês, alemão, a juntar ao nativo húngaro, tido como uma das línguas mais encriptadas do mundo ocidental.

Foi o à-vontade e a capacidade de atirar-se para a frente que a salvaram mais uma vez e a trouxeram da ainda demasiado perigosa Dinamarca dos anos ’40 do século passado para o mais tranquilo e neutral Portugal. E por cá ficou e se estabeleceu.

Começou a dar aulas das várias línguas que falava e criou uma rede de amizades e apoios, graças ao espírito aberto, natural de quem já tinha passado por uma guerra e por uma mão cheia de países em tão tenra idade.

Em Portugal conhece uma fé, uma nova religião eu tinha a ousadia de dizer que a Terra era um Só País e a Humanidade os seus Cidadãos. Achou piada, identificou-se, quem sabe até pelos males da guerra racista e preconceituosa pela qual passara, e começou a investigar. Resolveu juntar-se a esta fé mais tarde.

Nora de Buda fumava e bebia muito na juventude. E foi quando resolveu juntar-se a esta fé, que proibia o álcool, foi nessa altura que se deparou com um dilema. Aqueles ensinamentos e modo de vida eram tudo o que procurava, mas dizer adeus para sempre à bebida não era fácil. Decidiu-se por uma última noite de excessos e no dia seguinte juntou-se a esta religião. Nunca mais tocou numa gota e até os cigarros foram ficando cada vez mais escassos na sua mão.
Nora de Buda era uma personagem excêntrica. Vestiu-se até ao fim da vida com as mesmas roupas de há décadas, já que o seu corpo franzino mal abandonou o tamanho de criança. Ninguém ficava indiferente ao vê-la num autocarro, num comboio ou na rua, aquela babushka húngara no meio de Lisboa ou do Estoril.

Uma das suas actividades, como já foi dito, era dar aulas de idiomas. Foi minha explicadora de francês. Terças e quintas, duas horas de manhã, lá rumava eu à Avenida João XXI para aprender e cimentar a língua das luzes. Não foi fácil, até porque já ninguém fala francês, mas o método da Nora era eficaz. As aulas eram gravadas em velhinhos aparelhos de cassettes e depois era meu trabalho de casa ouvi-las em casa para depois fazer um resumo na lição seguinte. Método entendiante mas que funcionou. Comigo e com os meus primos, que depois aprenderam inglês também com a velhinha amiga Nora.

A Nora não era uma pessoa fácil. Era insistente e normalmente conseguia levar a dela avante. Como se costuma dizer, vencia pelo cansaço. Até que se percebesse como dar-lhe a volta. E mais uma vez o método era fácil: simplesmente dizer ‘não!’. A Nora de Buda era daquelas pessoas muito britânicas, em que o não é não, o sim é sim, e o talvez não existe. As meias tintas lusitanas com ela simplesmente não funcionavam e quem não percebesse isso arriscava-se a telefonemas de madrugada a pedir as coisas mais simples ou extravagantes, que um rotundo ‘não’, sem ofensas, teria resolvido na tarde anterior…

A amiga Nora também ficou conhecida pelos seus dotes culinários, mais exactamente pelos peculiares doces. Se calhar, mais uma vez, fruto de quem passou pela guerra, a Nora aproveitava tudo. E para estes doces, os restos aproveitados eram borras de café, cascas de fruta, enfim, o que estivesse à mão. Havia duas opiniões muito distintas. Havia quem adorasse. Havia quem odiasse. Mas indiferentes não havia nenhum, até porque todos provaram já que ninguém, ao primeiro embate, era capaz de um claro ‘não!’.  

Dona de um corpo franzino, como já foi dito, a Nora foi operada já nos últimos anos de vida e, sem explicação aparente, aguentou já muito fraca um bypass no coração. E não só aguentou como ainda foi à Dinamarca de avião visitar a família, com poucas e leves malas é verdade, gentilmente carregadas por um passageiro apanhado desprevenido que sentado ao seu lado também não disse não e quase levou de porta à porta o espólio da Nora…

A última vez que vi a amiga Nora com vida foi à beira de uma piscina, no calor do Verão do sol de Santarém. Magrinha como sempre, com o nariz comprido e espetado típico dos judeus, mas sempre sorridente. E claro, com um biquíni, porque quem já atravessou a Europa para fugir ao nazismo não se importa com essas coisas, sobretudo quando já passou dos 90.




  

sexta-feira, outubro 17

Crónicas de Leeds – Dia 6

Último dia por terras de Isabel II. Depois de deixarmos as meninas na escola pela manhã, rumo ao centro da cidade. Para a despedida é claro que esteve quase sempre a chover, com o céu bem cinzento.  Passeámos pela zona universitária, que está integrada no coração de Leeds, espreitámos uma galeria de arte moderna e assinalámos a partida da edição deste ano do Tour de France, a maior prova do ciclismo mundial, que partiu desta cidade a 5 de Julho. 

5 de Julho prometia ser um dia de sonho para o ciclismo do Reino Unido, com a honra do início de uma das maiores provas do desporto mundial em solo britânico, a esperança da vitória de Mark Cavendish e o desejo do atleta envergar a camisola amarela, símbolo de líder, em Harrogate, uma cidade próxima, a meta da primeira etapa e cidade natal da mãe de Cavendish. Em vez disso o britânico sofreu uma queda aparatosa, teve que desistir da prova, e viu na última largada, nos Champs-Elysées, em Paris, a vitória a sorrir ao italiano Vincenzo Nibali.

Apesar das diferenças entre os dois países, há uma coisa em comum, com os velhotes portugueses e britânicos. Se por cá, já reformados, jogam à malha e à bisca nos jardins, por Leeds há dois tabuleiros de xadrez gigantes, de tamanho humano, em que os mais velhos passam o tempo. Quando não chove, claro.

Antes da ida para o aeroporto de Manchester, mais uma paragem em casa de outra família portuguesa, com direito a chouriço assado. Perguntei pelas equipas de futebol da cidade, o United, por onde passaram Cristiano Ronaldo e Nani, e o City, comprado por um multimilionário árabe. O estádio do United fica longe mas o do City fica mesmo ao lado de casa deles. E em dias de concertos dá para ouvir sossegados em casa.


E foi assim uma semana em Leeds, a convite de amigos de sempre que já há muito que são família. Dias de reflexão sobre a vida, dias de certeza sobre a amizade e o amor, dias de esperança e reforço de baterias para o que aí vem.

quinta-feira, outubro 16

Crónicas de Leeds – Dia 5

O dia mais frio de todos, até agora. Amanheceu com muito nevoeiro, em bom português sem se ver um palmo à frente do nariz, e com seis graus. Tínhamos planeado ir a um santuário da Natureza para a observação de pássaros a norte de Leeds e o dia cinzento não nos impediu. O verdadeiro countryside inglês, com campos a perder de vista, com muito verde e casas senhoriais na paisagem, até chegarmos ao local. E a promessa não desiludiu. 

Não só vimos as mais diferentes espécies de pássaros, desde pequenos com peito laranja-fogo a maiores com cauda azul-marinho, como ainda minúsculos esquilos, cisnes, bisontes, para além de patos. À chamada faltaram os veados. Pelo meio dos bosques que faziam lembrar a ‘Alice no País das Maravilhas’, gigantescas teias de aranha com fios que pareciam seda, cogumelos dos mais estranhos feitios, e ainda pântanos e pequenos lagos. Quase que nos podíamos transportar para a pele de Helen Mirren enquanto ‘The Queen’, no filme que lhe valeu o Óscar de Melhor Actriz, enquanto na coutada real meditava sobre a morte da Princesa Diana.


Aqui, na paisagem campestre inglesa, e ao contrário da cidade, todos com quem nos cruzámos nos sorriram e trocaram conversas amigáveis, com o seu sotaque típico do Yorkshire. Tal como em Portugal, nesta reserva natural vi muitas pessoas a correr, sozinhas ou com os seus cães, a provar que a corrida está mesmo na moda a nível internacional. E, algo muito comum, famílias inteiras, cada um com os seus binóculos, a observar as aves. Um verdadeiro dia ‘very british’.   

quarta-feira, outubro 15

Crónicas de Leeds – Dia 4

O dia de hoje foi passado numa eco-community, ou uma comunidade ecológica. Neste ‘condomínio fechado verde’ cada família ocupa uma casa construída com estuque feito de palha, rodeada de várias plantações, de milho a couve, de cebola a alho francês, para além de um espaço comum, a chamada ‘casa do povo’, que pode ser utilizada para reuniões, festas ou qualquer tipo de encontros. Cada família é responsável pelo tratamento da horta numa escala que roda semanalmente e o próximo passo é a criação de galinhas. 

Nesta eco-community vive uma família portuguesa e fomos lá passar o dia. Estando os meus amigos longe de Portugal há algum tempo foram várias as perguntas sobre o país e sobretudo sobre Lisboa. Em poucas palavras mostrei-lhes que Lisboa está de facto na moda a nível internacional, com muitos turistas mas também com residentes estrangeiros, e que se sente a multiculturalidade que falta no Norte de Inglaterra.

Enquanto fazíamos as pizzas para o jantar, feitas com massa ‘dita ecológica’ e preparada à mão, pediram que fizesse de DJ com os mais recentes êxitos da música portuguesa, bem como recordações dos anos 90. Assim, entre Ritual Tejo e Oquestrada, Sitiados e António Zambujo, Os Lunático ou Deolinda, lá ficámos com um gostinho de Portugal que atraiu os outros residentes da eco-community, todos eles ingleses.  

Ficámos juntos até depois das nove da noite, o que para Inglaterra, sobretudo numa altura em que os termómetros baixam invariavelmente abaixo dos dez graus, só pode significar que se passou bem a noite.


Em jeito de conclusão, apesar dos vários portugueses que conheço em Leeds estarem satisfeitos com a vida por cá, sobretudo pela falta de oportunidades em Portugal, a saudade vive em cada um deles, já não uma saudade triste e que se lamenta, mas uma saudade alegre e orgulhosa do país que temos.

domingo, outubro 12

Crónicas de Leeds – Dia 3

Visita ao centro da cidade. As ruas centrais são um centro comercial gigantesco, com telhados de vidro e acrílico a unir os edifícios, quase como as Galerias Vittorio Emanuele II em Milão. Há no entanto pouca variedade, faltando o toque multicultural que caracteriza Lisboa. Pelas ruas há cantores ambulantes, alguns dignos de palcos mais grandiosos. Não há metro em Leeds nem sequer está previsto, mas as cidades do Norte de Inglaterra venceram a batalha contra o centralismo de Londres e vão ter as inaugurais linhas de comboios rápidos.

Ao contrário de Londres, Leeds não é uma cidade monumental. Aliás, como todo o Norte de Inglaterra, é uma zona essencialmente industrial. Mas a avenida central vale a pena, ladeada de inúmeros edifícios vitorianos, dignos de uma das maiores cidades do país. Aqui e ali vêem-se cúpulas de igrejas mais antigas, mas de pedra escura, quase negra. Serão igrejas anglicanas, mas de facto nada que se compare com a profusão de igrejas, capelas, mosteiros e catedrais que dominam o Portugal católico.

Para a noite estava reservado um dos pratos típicos ingleses, o famoso ‘fish ‘n’ chips’. Para fazer face às ‘frites’ francesas, os ingleses têm as ‘chips’, batata cortada muito mais grossa e mais cozida do que propriamente frita. Quanto ao ‘fish’, assemelha-se a filetes muito fininhos de bom peixe impecavelmente branco. Mas, tal como esperado, com mais gordura do que desejado. A conversa ao jantar rapidamente evolui para boa comida portuguesa, alentejana em particular, ou não estivéssemos em casa de originários do sul de Portugal. Ensopado de borrego, açorda (as duas, a de camarão ou a de bacalhau, conforme sejam do Alto ou do Baixo Alentejo, sempre com muitos coentros e alho), sopa de cação, e delicioso pão alentejano e os ainda melhores doces conventuais. Fica prometido para Dezembro.

sábado, outubro 11

Crónicas de Leeds – Dia 2

Continua o frio, claro. E hoje já dá para ver que o céu está muito cinzento, a ameaçar chuva. Welcome to England. Mesmo assim visto-me o mais abrigado que posso, que não é muito porque não contava com um choque térmico tão grande, e meto-me à estrada de ténis calçados. Em duas horas de caminhada as casas não variam muito. Tijolos vermelhos, dois, três andares, janelas grandes para deixarem entrar a pouca luz do exterior. O interessante é que todas as casas têm um jardim, em frente ou nas traseiras, e todos ou quase todos muito bem cuidados. Relva aparada, roseiras podadas, arbustos geométricos, tudo muito bem orientado e montado como se de um puzzle com quatro mil peças correctamente encaixado. A expressão inglesa de lagartos no jardim ao sol (quando o há) parece fazer todo o sentido. Pelos passeios, por contraste com Portugal, quase não há lixo deitado no chão. Talvez por ser uma zona residencial, talvez pelo frio não convidar a estar na rua, a verdade é que é motivo para termos vergonha dos nossos passeios. Mas do lixo que há, a esmagadora maioria são latas de cerveja. A tradição parece que se confirma.

Das raparigas que me cruzo na caminhada, todas elas estão muito pintadas, o que confirma a ideia que tinha das inglesas. Já eles estão quase todos de fato-de-treino, com o seu sotaque quase imperceptível do Norte de Inglaterra. E ao contrário de Portugal, ninguém se olha nos olhos quando se cruza na rua.

Como se sabe os ingleses orgulham-se de serem diferentes do resto da Europa. Tomadas eléctricas diferentes, sentidos de circulação na estrada diferentes, rotundas ao contrário e até os botões de ‘on’ são para baixo e os de ‘off’ para cima. Sendo, para atravessar as ruas, claro que parecia um cata-vento, a olhar a re-olhar várias vezes em todas as direcções. As paragens de autocarro estão bem pensadas, já que a abertura não está virada para a estrada, o que evita que as poças de água da chuva sejam empurradas pelos automóveis para quem espera, mas sim para as casas. E por falar em automóveis, tenho que destacar um autocolante num deles: ‘Dogs are for live, not only for Christmas’.

Como já disse o orgulho inglês nota-se e sente-se a cada momento. Numa altura de ressaca do referendo sobre a independência da Escócia, a cerca de 200 quilómetros a norte de Leeds, aqui e ali vêem-se bandeiras de Inglaterra e do Reino Unido hasteadas em casas e nos carros. Faz lembrar quando Scolari pediu aos portugueses que colocassem bandeiras de Portugal de apoio à Selecção à janela, por altura do Euro 2004 e Mundial 2006. Aliás a questão de orgulho nacional, sempre muito presente em Inglaterra, está casa vez mais acesa. A R. explica-me que o receio do UKIP vencer as eleições e dominar o Reino Unido é cada vez maior, o que constitui uma ameaça para quem não é inglês. Já uns amigos portugueses que no ano passado estiveram no Sul de Inglaterra tinham contado que um dos motivos para não terem cá ficado era esse mesmo, o avanço do UKIP.


São três da tarde, o que para Portugal seria a meio do dia. Mas aqui já caminhamos para o fim. Até amanhã.

sexta-feira, outubro 10

Crónicas de Leeds – Dia 1

Viagem no avião da Ryanair pela segunda vez, passados dez anos de um Paris-Barcelona em que confesso que o voo tremeu por todos os lados e por uma das poucas vezes numa ligação aérea pensei que íamos cair. Desta vez sem problemas, apenas os bancos amarelo-canário que me levou a ir as pouco mais de duas horas de voo sempre de óculos escuros, como se fosse um concorrente da Casa dos Segredos. Viajar na Ryanair é uma festa, é como ir à Feira Popular. Há sempre algo a acontecer, desde hospedeiros e hospedeiras para trás e para a frente num corredor estreito onde só cabe uma pessoa, passando por sorteios de raspadinha entre os passageiros, até a um capitão que de vez em quando conta piadas e mete-se com os colegas. ‘Eu amo você’, dizia ele, volta e meia. E no final, à chegada a Manchester, depois do tradicional agradecimento de termos escolhido a Ryanair e do desejo de nos voltar a ver, acrescenta que se isso não acontecer brevemente, aproveita para desejar ‘Feliz Natal e Próspero Ano Novo’.

O aeroporto de Manchester é gigantesco, muito maior que a nossa humilde Portela, mesmo juntando o ainda mais humilde Terminal 2. No caminho para Leeds, destino final, pelo meio das auto-estradas, a condutora R. explica-me que nesta altura não pode andar a mais de 50 miles devido às obras. E eu pergunto se mesmo com obras se pagam portagens. Responde-me que não, que não portagens em Inglaterra, pelo menos aqui no Norte. Portugal acaba por ter o pior dos dois mundos. Temos auto-estradas que não são precisas, em sítios onde não as pedimos e onde bastavam IC’s ou IP’s, e para além disso, quando estão em obras, continuamos a pagar as portagens, ao contrário da Alemanha, onde quando há trabalhos o utilizador não paga (não se pode pagar um serviço que não se usufrui certo?). Mas como nem tudo pode ser perfeito, e ao contrário das nossas estradas, normalmente mal indicadas ou sem indicação sequer, aqui no Norte de Inglaterra há placas por tudo e por nada, luzes no asfalto, setas e mais setas, o que nos leva a perder a saída para ir visitar a V. que fazia anos. Fica para o fim-de-semana.


Chegada a casa. Bairro tipicamente inglês, ou pelo menos o que vemos nos filmes. Tudo muito calmo, organizado, quase desenhado a regra e esquadro. Moradias individuais, nenhuma delas com mais de três andares, de tijolo vermelho claro. Cá dentro, a contrastar com os nove, dez graus do exterior, está quente. Viva o aquecimento central e o cuidado que sempre falta em países que se acham sempre quentes, como Portugal. E a fazer par com o tradicional tijolo vermelho exterior, temos a ainda mais tradicional escada interior, com cozinha no rés-do-chão, zona de lazer no andar do meio e quartos no último andar. E sossego, muito sossego, ou não estivéssemos numa zona chamada The Oaks, Os Carvalhos. Amanhã há mais, porque onze da noite em Inglaterra parecem altas horas da madrugada em Lisboa.