Leonora de Buda
Um dos últimos anúncios de emprego a que respondi (e já lá vão dez meses...) pedia que enviasse um texto em forma de retrato com cerca de cinco mil palavras sobre uma figura pública ou alguém que eu conhecesse. Aqui fica o que enviei. Claro que nem é preciso dizer que não houve resposta. Há quem me diga que temos que aceitar que há pessoas melhores que nós que são escolhidas. E com certeza que há. Mas quando se pede uma prova há que depois dar o resultado.
+.+.+.+.+.+
Leonora de Buda
Leonora de Buda, Buda de Budapeste, atravessou a Europa
nazi, refugiou-se na Dinamarca mais ou menos livre, mas foi em Lisboa e no
Estoril que encontrou a liberdade e a força para viver.
Leonora de Buda, que ficou conhecida por Nora de Buda, ou
simplesmente a amiga Nora, nasceu em Budapeste, capital da Hungria, numa
família com posses, como é costume nas famílias judias. O que podia ser uma
vantagem à partida, sem dificuldades económicas e com uma rede de apoio
garantida como é o mundo judeu, tornou-se no maior dos azares, já que Nora era
criança quando Hitler e o nazismo tomaram conta da Europa e invadiram
Budapeste.
A Nora nasceu na parte maior da capital da Hungria, Buda,
que é também a mais rica. Daí o nome, Nora de Buda. Peste é a parte pobre da
cidade do Danúbio e a ilha Margarita é palco quase reservado apenas para
turistas.
Mas voltemos à Nora. Ainda criança viu-se então rodeada de
Hitlers e Himmlers Goebbels e o destino só podia ser um: fugir, e o mais
rapidamente possível. Da Hungria conseguiu chegar à Dinamarca, rumo a uma terra
supostamente mais livre mas mais próxima do cancro nazi, atravessando o centro
da Europa, com todos os perigos daquela época em que as sombras dominavam as
luzes. No meio da calamidade, Nora acabou por desenvolver uma grande capacidade
de relacionamento pessoal, com certeza para conseguir escapar de situações
complicadas, e adquiriu competências excepcionais em dinamarquês, francês,
inglês, alemão, a juntar ao nativo húngaro, tido como uma das línguas mais
encriptadas do mundo ocidental.
Foi o à-vontade e a capacidade de atirar-se para a frente
que a salvaram mais uma vez e a trouxeram da ainda demasiado perigosa Dinamarca
dos anos ’40 do século passado para o mais tranquilo e neutral Portugal. E por
cá ficou e se estabeleceu.
Começou a dar aulas das várias línguas que falava e criou
uma rede de amizades e apoios, graças ao espírito aberto, natural de quem já
tinha passado por uma guerra e por uma mão cheia de países em tão tenra idade.
Em Portugal conhece uma fé, uma nova religião eu tinha a
ousadia de dizer que a Terra era um Só País e a Humanidade os seus Cidadãos.
Achou piada, identificou-se, quem sabe até pelos males da guerra racista e
preconceituosa pela qual passara, e começou a investigar. Resolveu juntar-se a
esta fé mais tarde.
Nora de Buda fumava e bebia muito na juventude. E foi quando
resolveu juntar-se a esta fé, que proibia o álcool, foi nessa altura que se
deparou com um dilema. Aqueles ensinamentos e modo de vida eram tudo o que
procurava, mas dizer adeus para sempre à bebida não era fácil. Decidiu-se por
uma última noite de excessos e no dia seguinte juntou-se a esta religião. Nunca
mais tocou numa gota e até os cigarros foram ficando cada vez mais escassos na
sua mão.
Nora de Buda era uma personagem excêntrica. Vestiu-se até ao
fim da vida com as mesmas roupas de há décadas, já que o seu corpo franzino mal
abandonou o tamanho de criança. Ninguém ficava indiferente ao vê-la num
autocarro, num comboio ou na rua, aquela babushka húngara no meio de Lisboa ou
do Estoril.
Uma das suas actividades, como já foi dito, era dar aulas de
idiomas. Foi minha explicadora de francês. Terças e quintas, duas horas de
manhã, lá rumava eu à Avenida João XXI para aprender e cimentar a língua das
luzes. Não foi fácil, até porque já ninguém fala francês, mas o método da Nora
era eficaz. As aulas eram gravadas em velhinhos aparelhos de cassettes e depois
era meu trabalho de casa ouvi-las em casa para depois fazer um resumo na lição
seguinte. Método entendiante mas que funcionou. Comigo e com os meus primos,
que depois aprenderam inglês também com a velhinha amiga Nora.
A Nora não era uma pessoa fácil. Era insistente e
normalmente conseguia levar a dela avante. Como se costuma dizer, vencia pelo
cansaço. Até que se percebesse como dar-lhe a volta. E mais uma vez o método
era fácil: simplesmente dizer ‘não!’. A Nora de Buda era daquelas pessoas muito
britânicas, em que o não é não, o sim é sim, e o talvez não existe. As meias
tintas lusitanas com ela simplesmente não funcionavam e quem não percebesse
isso arriscava-se a telefonemas de madrugada a pedir as coisas mais simples ou
extravagantes, que um rotundo ‘não’, sem ofensas, teria resolvido na tarde
anterior…
A amiga Nora também ficou conhecida pelos seus dotes
culinários, mais exactamente pelos peculiares doces. Se calhar, mais uma vez,
fruto de quem passou pela guerra, a Nora aproveitava tudo. E para estes doces,
os restos aproveitados eram borras de café, cascas de fruta, enfim, o que
estivesse à mão. Havia duas opiniões muito distintas. Havia quem adorasse.
Havia quem odiasse. Mas indiferentes não havia nenhum, até porque todos
provaram já que ninguém, ao primeiro embate, era capaz de um claro ‘não!’.
Dona de um corpo franzino, como já foi dito, a Nora foi
operada já nos últimos anos de vida e, sem explicação aparente, aguentou já
muito fraca um bypass no coração. E não só aguentou como ainda foi à Dinamarca
de avião visitar a família, com poucas e leves malas é verdade, gentilmente
carregadas por um passageiro apanhado desprevenido que sentado ao seu lado
também não disse não e quase levou de porta à porta o espólio da Nora…
A última vez que vi a amiga Nora com vida foi à beira de uma
piscina, no calor do Verão do sol de Santarém. Magrinha como sempre, com o
nariz comprido e espetado típico dos judeus, mas sempre sorridente. E claro,
com um biquíni, porque quem já atravessou a Europa para fugir ao nazismo não se
importa com essas coisas, sobretudo quando já passou dos 90.
1 Comentários:
Aí Pedro! Estou com lágrimas nos olhos! Já nem me lembrava de certas coisas: ir até à João XXI, as k7! Aí as k7!
A sua ropa, o seu sorriso, o tom de voz que tinha, a sua cara cheia de rugas e muito suave.
O cuidado e atenção que tinha o teu pai com ela, tal como a minha mãe, eles admiravam e cuidaram muito dela. Da nossa Nora de Buda.
Parvos são os que não te chamaram do emprego, eles é que perdem!
Enviar um comentário
Subscrever Enviar feedback [Atom]
<< Página inicial