Tigre da Tasmânia

«Eu escrevo como se fosse salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida» C. Lispector

sábado, setembro 30

No largo das especiarias

Atravessar o Largo do Martim Moniz, nos nossos dias, pode assemelhar-se a uma viagem ao Magrebe, à Índia, à China ou à África profunda. E tudo sem sequer rumar ao aeroporto da capital, na Portela. A multiculturalidade daquele espaço, quase esvaziado de alfacinhas de gema, é simultaneamente um problema e uma potencial riqueza social.

Do Centro Comercial da Mouraria ao Centro Comercial do Martim Moniz, passando pelas lojas de roupa da Rua da Palma e pelos restaurantes no início da Avenida Almirante Reis, seguindo pelas boticas na antiga estação de metropolitano do Socorro, agora rebaptizada com o nome do largo, ou simplesmente vagueando pelas fontes que decoram a gigantesca praça, o cidadão mais distraído não diria que estava na capital de Portugal, na ponta ocidental da Europa.

A verdade é que esta zona de Lisboa, por onde D. Afonso Henriques e os cruzados, mais o herói cortado ao meio Martim Moniz, terão iniciado a conquista de Lix Buna, sempre foi habitada por estrangeiros. Hoje cruzam-se diariamente, ali habitam e trabalham, chineses, marroquinos, indianos, moçambicanos, naturais do Bangladesh, entre outros.

Os dois centros comerciais do largo, construídos em lados opostos na década de 80 e hoje considerados por arquitectos e cidadãos como um atentado urbanístico, estão recheados de lojas típicas de paragens longínquas. No Centro Comercial do Martim Moniz, junto ao Hospital de S. José, no primeiro andar cheira a caril, no segundo reina a essência de rosa e a partir do terceiro inicia-se uma pequena China Town, com lojas de pronto-a-vestir, bijutaria, brinquedos e no terraço um inevitável restaurante. Em frente, no Centro Comercial da Mouraria, proliferam os estabelecimentos africanos. E um pouco mais acima, no emaranhado de ruas que sobem para o Castelo, esconde-se um restaurante moçambicano, envolto em aromas de côco e picante. Quando nos dirigimos para norte do Martim Moniz, à entrada da Rua da Palma e seguindo para a Avenida Almirante Reis, deparamo-nos com mais lojas de roupa, quase todas chinesas, e ainda restaurantes orientais. É o melting pot à lisboeta.

Mas é num dos extremos desta zona que se encontram os maiores problemas. Apesar da maré azul da Polícia Judiciária que patrulha a área, o Intendente continua a ser um bairro problemático. Droga, prostituição, proxenetismo são as características normalmente associadas a estas ruas por todos os habitantes de Lisboa. E a verdade é que as profissionais mais antigas do mundo lá continuam nas esquinas, convenientemente vigiadas à distância pelos seus «gestores de carreira», e os junkies circulam pela zona, em busca da próxima dose que lhes garanta o paraíso.O poder reservado a quem de direito tem tentado intervir no eixo Martim Moniz/Mouraria/Intendente. Entre os anos 40 e 60 do século passado, o Estado Novo deu ordem de demolição de parte da Mouraria, com planos de reconstrução, sob pretexto de terminar com o bairro fechado que entretanto ali se criara. As casas vieram abaixo, mas até à década de 80 a ferida aberta, vergonhosa, ali resistiu a céu aberto. Na altura, a Câmara Municipal de Lisboa permitiu a construção do já referido e contestado Centro Comercial da Mouraria. E foi apenas quase no virar do milénio que o arranjo do largo, com fontes, repuxos e quiosques, foi terminado.

No que diz respeito ao Intendente, a autarquia da capital, segundo o antigo presidente Santana Lopes, pretende requalificar «uma chaga aberta, mas já um pouco menos ferida». Para isso foram retiradas as camionetas do Largo do Intendente, que serviam de abrigo aos toxicodependentes, e foram encerrados diversos estabelecimentos de hospedagem.

Na colina que ruma em direcção ao Hospital de S. José, ao lado do centro comercial, a EPUL, empresa pública, está a construir o empreendimento Residências do Martim Moniz, de forma a trazer de novo população para o centro da cidade.

A Rede Anti-Racista, conjunto de associações de imigrantes, tem organizado nos últimos anos a «Festa da Diversidade», com o apoio da EGEAC, empresa municipal, no Largo do Martim Moniz. O evento, que alia música, dança, ginástica, debates e demonstrações, é um esforço de valorização da potencial riqueza social daquela zona, tentando demonstrar e pôr em prática o conceito de unidade na diversidade, aliado ao estatuto de cidadão do mundo.
Esta nova visão estratégica visa então contribuir para que o mosaico cultural do Martim Moniz possa surgir como exemplo de melhor entendimento do que é diferente, mas não por isso negativo.

2 Comentários:

Às 10:33 da manhã , Blogger Dad disse...

Belíssimo texto Pedro!
Ums descrição total de quem conhece o Martim Moniz!

Beijinho e bom fim de semana!

 
Às 1:30 da manhã , Blogger Aniloraczinha disse...

Adorei:)

 

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