Tigre da Tasmânia

«Eu escrevo como se fosse salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida» C. Lispector

terça-feira, novembro 3

O meu Pai - a última entrevista

Entrevista à revista do ACIDI (Alto Comissariado para a Imigração e o Diálogo Intercultural) neste Verão.



Mário Mota Marques:

“Em Portugal, a Fé Bahá’í foi pioneira no diálogo inter-religioso”

Os Bahá’ís são os seguidores de Bahá’u’lláh, que nasceu na Pérsia e viveu entre 1817 e 1892. Os Bahá’ís acreditam que existe um só Deus, designado de maneira diversa nos vários idiomas, e que todas as religiões provêm desse mesmo Deus. Assim, os fundadores das diferentes religiões, como Zoroastro, Moisés, Buda, Cristo e Bahá’u’lláh, foram Mensageiros do mesmo Deus para os homens. Deus é apenas um e manifesta-se de tempos a tempos à humanidade através dos seus Mensageiros ou Profetas. Bahá’u’lláh foram assim sido a última Manifestação de Deus à humanidade e outras se seguirão.

Mário Mota Marques, Director de Assuntos Externos da Comunidade Bahá’í em Portugal, explica nesta entrevista a vivência e as actividades desta Comunidade no nosso país.


Desde quando está a Fé Bahá’í em Portugal?

Em Portugal, uma das primeiras referências à Fé Bahá’í deve-se a Eça de Queiroz, em “A Correspondência de Fradique Mendes”. Como curiosidade histórica, antes ainda, em 1848, um dicionário popular português dedicou sete páginas a esta religião, apenas trinta anos depois de ter surgido na Pérsia. A Fé Bahá’í existe organizada em Portugal desde 1949. Em 1975, fomos reconhecidos pelo Ministério da Justiça como religião e, com a lei de 2001, a Fé Bahá’í adquiriu o estatuto de religião radicada. Isto significa, por exemplo, que o casamento Bahá’í tem efeitos civis, tal como o casamento católico. Paradoxalmente, nós que somos uma minoria realizámos já cerca de dez casamentos da Fé Bahá’í com efeitos civis.


O que atrai um português para a Fé Bahá’í?

Penso que o que tem seduzido os portugueses, desde a década de 50 até à actualidade, é o facto de termos uma filosofia de vida que combina os aspectos espirituais, éticos e de educação para os valores (a educação é muito importante para nós) com a crença em Deus. Neste momento o mundo, e Portugal não foge à regra, está a redescobrir a necessidade da existência de Deus e de valores éticos, sociais, económicos. Há um movimento internacional que faz com que as pessoas se virem para os valores espirituais, mas sobretudo éticos, aplicados à vida concreta. Isto verifica-se sobretudo entre os jovens, que sentem um vazio e encontram em nós um desafio e um estímulo para a educação.


No seu caso, qual foi o percurso?

Desde jovem que me interessei pelos mais diversos aspectos religiosos e filosóficos. Quando tinha 17 anos, em 1959 ou 60, um amigo levou-me a uma reunião Bahá’í. Mas mesmo antes de conhecer que Bahá’u’lláh seguia na linha dos profetas anteriores, eu intuía que Cristo e Maomé não podiam ser os únicos e que os desígnios de Deus têm de ter continuidade. Assim, a mensagem de que Bahá’u’lláh é o Mensageiro de Deus para a época actual e segue a linha dos anteriores encontrou-me muito receptivo há cinquenta anos.


Como se estrutura a Fé Bahá’í no quotidiano da sociedade portuguesa?

Temos uma estrutura nacional composta por nove membros eleitos anualmente, o Conselho Nacional Bahá’í. A nível local, temos um Conselho também composto por nove membros e eleito anualmente. Esta organização é simultaneamente administrativa e espiritual.

O nosso calendário tem dezanove meses e dezanove dias. No início de cada mês, temos uma reunião em que fazemos uma síntese entre o que é espiritual, o que é administrativo e o que é convívio. Estes encontros têm uma primeira parte profundamente espiritual e meditativa, com leituras sagradas não apenas da Fé Bahá’í, mas também de outras religiões. A segunda parte é a administrativa, em que o conselho local presta à comunidade, democraticamente, o relatório das suas actividades, e recebe sugestões para o seu trabalho ao longo dos próximos dezanove dias. A terceira parte é um convívio amigável entre os membros da comunidade.



Como se distribuem as pessoas e as actividades pelo país?

Somos cerca de nove mil, espalhados por todo o território português, e estamos em cerca de 150 cidades, vilas e aldeias do Continente, Açores e Madeira. Temos centros pertencentes à comunidade em Lisboa, Portimão, Gaia, Viana do Castelo e Funchal. Para além disso, funcionamos em salas alugadas ou em casas particulares. A Câmara Municipal de Sintra cede-nos a sala da Assembleia Municipal para a nossa convenção anual e a Câmara Municipal de Lisboa tem também cedido uma sala no Centro Multicultural da Pontinha. Outras Autarquias, Juntas de Freguesia e várias Instituições também nos cedem salas.


No nosso país, os Bahá’í são maioritariamente portugueses?

Há cinquenta anos, a comunidade tinha muitos estrangeiros, mas actualmente é constituída sobretudo por portugueses. Noventa e nove por cento são portugueses e alguns dos estrangeiros estão em Portugal há décadas. Com a instabilidade no Irão nos anos 80, Portugal serviu como passagem para o Canadá de centenas de seguidores da Fé Bahá’í. Foi um período complicado, em que conseguimos ajudar centenas de membros da comunidade Bahá’í do Irão, que sofreram uma perseguição religiosa.


É possível traçar um perfil dos Bahá’ís em Portugal?

Têm um perfil muito variado, deste trabalhadores manuais a professores universitários, artistas, empresários... Talvez a maioria seja composta por pessoas da classe média, mas a fé Bahá’í percorre transversalmente a sociedade portuguesa.


Para a Fé Bahá’í, a formação e o trabalho são factores fundamentais...

A educação é fundamental para nós. E o trabalho, se encarado como algo que é útil à humanidade, com carinho e empenho, é uma forma de oração. Para sensibilizar as pessoas para os nossos valores, organizamos actividades abertas para todos e por vezes apenas a pessoa que organiza, a quem nós chamamos facilitador, pertence à Fé Bahá’í.

Temos três tipos de actividades, consoante os escalões etários: Dos 5 aos 14 anos, fazemos uma educação para os valores através de jogos, participação interactiva, música, desenvolvimento da capacidade de amizade e de uma série de princípios que formam o homem. Dos 14 aos 20 anos, juntamos grupos de jovens que frequentam um curso de descoberta de si mesmo semelhante ao dos adultos. É um curso interactivo, gratuito, onde as pessoas progridem através de um conjunto de sete livros. No primeiro, encontram valores que são partilhados por qualquer confissão religiosa. Se aceitam esses valores, vão lendo o segundo e o terceiro, com um conteúdo cada vez mais específico relacionado com a Fé Bahá’í.


Há preceitos difíceis de seguir na nossa sociedade?

Não. Há a oração diária e a leitura das Escrituras Sagradas, que não é nada que as outras confissões não façam. Há a ética no trabalho e na escola, que pode ser exigente, mas não especificamente na nossa sociedade.


Como tem sido o seu trabalho na Comissão do Tempo de Emissão das Confissões Religiosas?

Tem sido de um grande enriquecimento pessoal muito grande poder contactar com pessoas que a pouco e pouco se tornaram amigas. Nos seminários internacionais Bahá’ís, quando digo que em Portugal existe esta sã convivência entre as religiões e informo que o governo português tem incentivado e patrocinado o diálogo inter-religioso, olham para mim com espanto. Na Europa, Portugal é um exemplo de tolerância, de compreensão e do não-preconceito. O preconceito é o medo do desconhecido, e à medida que nos conhecemos uns aos outros não pode continuar a existir. Sabemos aquilo por que lutamos, aquilo que queremos e aquilo que podemos fazer juntos. Nesta área, a Igreja Católica tem tido um papel muito importante, através do Padre Peter Stilwell. Estou a lembrar-me, por exemplo, da reunião que tivemos na Igreja de S. Nicolau quando o Papa João Paulo II faleceu, que juntou membros das comunidades religiosas em Portugal a orar pela paz.


A Comunidade Bahá’í faz também parte da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género...

Devido à participação intensiva e muito apaixonada da comunidade Bahá’í no Ano Europeu para a Igualdade de Oportunidades para Todos, a Comissão para a Igualdade de Género, que tem um Conselho Consultivo composto por quarenta organizações não governamentais e associações ligadas à promoção da igualdade de género, resolveu nomear a Fé Bahá’í como membro desse Conselho Consultivo, o que aconteceu pela primeira vez com uma confissão religiosa. Essa nomeação foi feita pela presidente da CIG, Elza Pais, e por Jorge Lacão, o secretário de Estado que tutela a Comissão.


A Fé Bahá’í é uma religião que cultiva a tolerância?

A tolerância e a inclusão. Vem a propósito referir que em Portugal a Fé Bahá’í tem uma vanguarda de acção no diálogo inter-religioso e inter-cultural. Nos anos 60, era normal o presidente da comunidade Islâmica de Lisboa ter reuniões conjuntas com a comunidade Bahá’í. Mais tarde, em Março de 1971, houve um encontro histórico na Figueira da Foz, onde estiveram representantes das comunidades Católica, Presbiteriana, Budista, Anglicana, Adventistas do Sétimo Dia, Muçulmana e Bahá’í. O tema era “Liberdade Religiosa, Liberdade Humana”. Assim, estivemos sempre na vanguarda desse diálogo. A continuação desta compreensão entre todos nós, crentes de várias confissões, é importante. Gostaria de deixar umas palavras de Bahá’u’lláh sobre a amizade e a concórdia, que constam das Escrituras da Fé Bahá’í: “Convivei com todas as religiões em amizade e concórdia para se inale de vós a doce fragrância de Deus”. Penso que isto resume o que temos vindo a fazer em Portugal, que é o que vamos continuar a fazer.

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