Tigre da Tasmânia

«Eu escrevo como se fosse salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida» C. Lispector

sábado, novembro 11

A casa

Por entre as portadas brancas, já lascadas pelo sol e pelo vento, a praia abria-se, enorme, vasta, a perder de vista. Quem diria, já que em seu redor tudo eram falésias gigantescas, rochedos impenetráveis e um embrenhado labiríntico de chorões. Quem diria, repito, que no meio daquela selva se pudesse esconder um segredo tão grande que pelas suas dimensões não saltasse à vista.
Cá dentro reinava o silêncio. O sussurrar das ondas ecoava pelas paredes nuas, a leve brisa enfolava os cortinados como se fossem fantasmas. Uma cadeira de madeira, de palhinha, feita à mão, era o único objecto no meio da sala. Vazia, simbolizava também o vazio daquela casa em que desde há muitos anos apenas o arrastar pesado e preguiçoso dos pés do seu único habitante ressoava no solo. As portadas estavam fechadas. As portadas estavam sempre fechadas. Mas que importava se ele não abria os olhos desde aquele dia? As pálpebras, da falta de uso, estavam coladas ao rosto, pelo que ele habituara-se ao seu individual e original sistema de movimentos e deambulações pelos dois andares da casa.
Lá fora, junto ao mar, vestido de branco como uma múmia, ele apontava os olhos ao horizonte. No seu óculo interior via ondas de coral e peixes de ouro. Numa das encostas do mundo marinho ela estava sentada num trono de espuma a comer algodão doce com sabor a maracujá. Porque te foste embora, pensava ele.
Desde esse dia nunca mais abrira os olhos, se calhar para evitar as lágrimas. Dessa forma as comportas das pálpebras evitavam o rebentamento dos diques da alma. Por vezes pensava, Mas que disparate? Para quê chorar por alguém? Qual a razão que me leva a abdicar de viver por outro ser de carne e osso como eu? Tinha dias de euforia, em que prometia a si mesmo que na manhã seguinte abriria os olhos e nasceria de novo. No entanto, com a chegada incómoda da noite, toda a vontade se desvanecia como um dente de leão ao vento. E nesta intermitência ele vivia.
Todas as noites, cara encostada à almofada, pensava na sua vida até esse ponto. E a imagem era sempre a mesma: blocos de construção de madeira, verdes, vermelhos, azuis e amarelos, a empilharem-se sozinhos até ao topo. E quando faltava apenas o bloco final o desmoronamento, inevitável, precipitava a sua vida de novo para um turbilhão de ondas. Na pele sentia os cabelos enrodilharem-se nas orelhas, nos olhos, no nariz e na boca, como um colete de forças que, lentamente, apertava e tolhia os seus movimentos.
Lá longe rugiu um trovão. E outro. E mais outro. Os relâmpagos não os via, claro, mas sabia que lá estavam. Pressentia-os. Começou a contar os segundos entre cada grito dos céus. 15. 14. 13. 12. 11. 10. Estava a aproximar-se. As trovoadas eram comuns naquela zona e já não causavam o receio de antes. As pernas já não tremiam e o coração já não ameaçava rasgar a carne e saltar do peito. Após alguns minutos, com o corpo ensopado e a roupa colada ao corpo, ele dirigiu-se para casa.
As setas de água lá fora riscavam a areia e faziam desenhos ondulantes. Diante da fogueira, no panelão gigante, aquecia a sua sopa, onde massinhas boiavam contra feijões encarnados. Fumegante. Sentia-se seguro e feliz. Porque não era sempre assim, dizia de si para si mesmo? Porque não me basta isto? Porque não consigo apagá-la?
--*--
O dia amanheceu silencioso, depois da tempestade que varreu a praia durante a noite anterior. O sol, que tinha fugido tímido e cobarde quando os trovões chegaram sem pedir licença há umas horas atrás, quase explodia agora de tanto calor e energia, como que a tentar redimir-se. O mar estava plácido. Sem ondas. As árvores e os chorões estavam adormecidos, depois da agitação nocturna, e tempo parecia parado. Mas o pêndulo do relógio do andar de baixo da casa dizia que não, que a vida continuava o seu caminho, constante e imparável.
Deitado num velho colchão ao canto da sala, o despertar dele não era igual ao despertar de todos nós. Os olhos selados não se abriam pela manhã, as portadas não eram abertas para dizer bom dia ao mundo e as pálpebras não eram esfregadas com água para acordarem de vez. É hoje que vou abrir os olhos, é hoje e basta de disparates, disse em voz alta, para ser mais convincente consigo mesmo.
Saiu para a praia e dirigiu-se à floresta, o seu frigorífico e sala de refeições improvisados, já que praticamente só comia frutos. De vez em quando pescava e assava o peixe na brasa. Enquanto escolhia a maçã mais vermelha da árvore sentiu um piparote na cabeça. Era um côco. Não ligou. Passado um minuto outro, e mais outro, e mais outro. Percebeu que alguém andava ali a divertir-se às suas custas. Há anos que não via outro ser humano. E não era por não abrir os olhos, mas sim porque de facto nenhum ali havia ido antes. Que se passa aí, gritou. Resposta: uma laranja pequenina no meio da testa. De cara fechada deu meia volta e foi-se embora. Ei! Espera aí, ouviu. Parou alguns segundos e depois seguiu caminho. Não sejas mal-disposto, disse, com tom trocista, a voz. Que queres? Quero que abras os olhos e me vejas. Impossível! Não quero e não vou abrir os olhos só porque tu queres. Adeus. E começou a correr rumo à praia. A voz seguiu-o. Porque és tão idiota, perguntou. Quem és, foi a resposta perguntada. Sou aquela que não queres ver. E desapareceu.
--*--
Passaram-se dias e dias, cada um igual ao anterior e semelhante ao seguinte. Naquele lugar secreto o sol e a lua marcavam a hora, ao mesmo tempo que o estado de espírito dele era pautado pelos dois astros. De dia, ele era sol, cheio de vida e felicidade. Sentia-se um soldado na frente de batalha, diante do inimigo, imbatível e vencedor. De noite, ele era lua. Soturno, negro, apagado. Sentia-se mínimo perante tudo e recordava-se da época em que, perante todos, ainda mais pequeno era. Tratava-se de uma batalha que ele não conseguia decidir. Sol versus Lua, Diabão vermelho versus Anjinho branco, Esquerda versus Direita, Norte versus Sul, tudo entretido a fazer o jogo do empurra.
Passos. Lá em baixo alguém corria a alta velocidade, batendo com as janelas e dando pontapés nas portas. Acorda, acorda de uma vez e pára de sentir pena de ti próprio, gritava uma voz. Achas que cobrindo-te de agruras, fechando os olhos para aquilo que não queres ver, blindando o teu espírito e afastando tudo o que não estás habituado, achas que assim és mais feliz? Estás é mais seguro, no teu reinozinho criado por ti, nesse mundinho fechado e que cheira a mofo devido ao sangue que se te parou nas veias e ao oxigénio que fez greve nos teus pulmões. Se te sentes bem assim porque te queixas? Porque te lamentas como se fosses o desprotegido do mundo, aquele que ninguém compreende, aquele de quem devemos ter pena e a quem devemos fazer todas as vontades e satisfazer todos os caprichos. Se há que ter pena de ti é exactamente por isso, pelo ser em que te transformaste, um bicho de conta que se esconde na carapaça do caracol.
Estas palavras não eram novas para ele. Ouvira-as da boca de A, B, C, D, todos aqueles que o amaram, amigos, família e namoradas, lhe disseram o mesmo, devido à sua incapacidade extrema de amar alguém que não fosse ele próprio. Como resposta inventada, para ele e para os outros, e que de tanto ser repetida se tornou verdadeira, ele queixava-se de uma infância triste, de ser o patinho-feio da escola, de não ser cuidado pela família, de não isto, de não aquilo e de não aqueloutro. E de todas as razões invocadas, nenhuma delas o tinha como actor. Ele era, apenas e só, o que sofria. E devido a esta atitude todos se afastaram, ou melhor, ele conseguiu que todos se afastassem, culpando-os ainda por essa bifurcação de caminhos. E também por isso aquela que estava sentada num trono de espuma a comer algodão doce com sabor a maracujá se foi embora.
--*--
Durante a noite ele decidiu que na manhã seguinte não sairia da cama. Ficaria ali, deitado, prostrado, imóvel, tentando ocupar o menor espaço possível da Natureza, faria todos os esforços para passar despercebido, mesmo perante aqueles que são invisíveis mas que habitam o ar que nos envolve. Não queria mais fazer parte deste mundo, do outro também não. Queria simplesmente desaparecer, cessar de existir. Porque era mais fácil.
Sempre porque era mais fácil. As palavras duras dos passos que ouvira na véspera continuavam a ressoar, violentas, afiadas como lâminas, e cravavam-se impiedosas sobre o seu coração. O sangue, vermelho vivo, brotava do peito como uma cascata furiosa ou como um vulcão zangado, impossível de deter. Em breve o quarto estava inundado por aquela massa esponjosa cor de carmim e o catre onde dormia boiava e rodopiava pelo quarto. E já não era o quarto, mas sim toda a casa, a praia, o mar tingido de vermelho, o céu a rebentar de escarlate, todo o universo destruído e imbuído pelo seu sangue egoísta.
E de repente um trovão acordou-o da letargia e retirou-o da fantasia. As paredes tremiam e o chão abria brechas. As portadas batiam e a casa parecia ter ganho vida, movimentando-se sem rumo. Tinha de sair. Era a única solução. Sem fôlego, com os batimentos cardíacos a rebentar no peito e os pulmões a ameaçarem rasgar-se, ele correu para a praia. Descalço, rumou à beira-mar. Os céus, em fúria, largaram toda a água contida durante a noite.
Sentiu-se pequeno. Demasiado pequeno perante a força da Natureza.
As ondas gigantescas salpicavam-lhe a face, o vento veloz picava-lhe o rosto, a areia dançante furava-lhe a cara.
Sentiu-se pequeno. Demasiado pequeno perante a força da Natureza.

E em pânico, abriu os olhos. Para nunca mais os fechar.

1 Comentários:

Às 12:08 da tarde , Blogger A Sonhadora disse...

Oi, Petertiger...uma boa semana...continua a escrever assim, que um dia vamos ouvir falar mto de ti..
beijão da prestes... a ser vóvo...

 

Enviar um comentário

Subscrever Enviar feedback [Atom]

<< Página inicial